Memórias da Mão Maria Amélia Bulhões "E tudo conspira para que silenciemos: o pudor ou quem
sabe indizível esperança." Uma espécie de "memória da mão" percorre silenciosamente o processo de criação artística ao longo do século XX. Sua presença pode ser vistas em obras como "Três Água Fortes e a Mão Direita do Artista", de Picasso( 1936), ou em "Impressões das Mãos do Artista" de Vassaly Kandisnky (1926). Nestes dois casos, a impressão da mão identifica seu autor, abordando questionamentos do fazer manual e da autoria pessoal da obra. Já em "Identidade Alargada", de Denis Oppenheim (1971), e "Propagação", de Giuseppe Penonne (1995), aparecem problemáticas ligadas à presença do corpo e suas significações. Mas, em todos esses exemplos, a presença da mão engaja um conjunto de relações abstratas, mitos, fantasias e conhecimentos, carregando para o âmbito das artes visuais valores míticos de diferentes tradições que são reprocessados sob a forma de novas falas. A imagem das mãos, ao longo dos tempos, foi sendo impregnada de potências significativas derivadas dos diversos rituais que, em muitas culturas, a tomaram como ponto central. O Budismo, por exemplo, deu-lhe significativa importância enquanto pólo energético, pintando-as com desenhos simbólicos e fazendo-as realizar gestos reflexológicos denominados Mudrás. Cada dedo recebe um significado, e sua posição em determinado gesto corresponde a uma intenção conceitual na concentração. Assim, o toque do dedo indicador com o polegar determina o fechamento de um circuito que integra o nível cósmico com o eu individual , aspectos que cada um desses dois dedos representa. A cura pela energia das mãos é bem conhecida por inúmeras culturas, ela pode ir desde a simple pressão sobre pontos específicos ( Do-in) até os gestos mágicos com elas realizados pelos chamãs. O poder da postura das mãos sobre os corpos está presente também na religião católica, sob a forma da benção. Na Umbanda brasileira, os "passes" são movimentos em que as "entidades" passam suas mãos sobre o corpo do fiel, sem tocá-lo, energizando-o, para afastar doenças e trazer bons fluídos. Nessas religiões, há todo uma codificação gestual das mãos para evidenciar os momentos específicos dos rituais, sempre acompanhados de dizeres próprios. Além das mãos em si próprias, sua ação em desenhos ou escritas realizados sobre o corpo, ou mesmo sobre outras superfícies, como a areia, é utilizado de forma ritualística tanto por aborígenes australianos como por monges tibetanos. Tatuagens também são parte importante de rituais, trazendo em si mesmas uma sorte de força magnética. Em alguns rituais de povos primitivos atuais, desenhar a silhueta das mãos sobre objetos pode conduzir a sua posse, o que permite inferir que as marcas de mãos impressas nas cavernas representaram no espírito dos caçadores a captura dos animais. Na iconografia cristã, a mão cortada que emerge das nuvens é símbolo de Deus encarnado, e, ao longo da Idade Média, desenvolveram-se, principalmente nos Países Baixos, na Alemanha e na Áustria, cultos populares a imagens da "mão poderosa". Essa devoção foi transportada para a América no período colonial, tendo recebido aqui forte expansão, fazendo-se acompanhar do desenvolvimento de uma rica imagética que pode ser encontrada ainda hoje em muitos países latinos (1). Os exemplos citados são apenas uma pequena parte de um imenso conjunto de tradições que, de alguma forma, remetem à mão humana e que constituem uma fonte de referência para os artistas contemporâneos. Ao recorrer a essa imagem, eles trazem para a cena artística a lembrança desses antigos mitos. Mesmo sem manter suas conotações religiosas originais, eles contribuem para fortalecer no imaginário social um pensamento do sagrado. Mas, como muito bem observa Marc Le Bot, "O pensamento das religiões instituídas pretende revelar o secreto. O pensamento da arte é outro em relação ao enigma. Ela não é reveladora, mas ativa. É o trabalho da arte que nos tempos e espaços cambiantes pensa positivamente o real como segredo ou como enigma. A arte é um pensamento irreligioso do sagrado."(LE BOT,1994) Assim, pode-se dizer que a memória desses mitos retorna nas artes plásticas contemporâneas ressignificada. Não mais sob uma configuração religiosa, procurando responder os grandes enigmas, mas de uma forma poética e ambígua, fazendo parte das estratégias com que a arte atual trabalha a dúvida. Ou seja, ao mesmo tempo em que as conotações religiosas são abandonadas, uma condição socialmente aceita enquanto sagrada - a arte- é realimentada simbolicamente. A arte contemporânea não retoma os mitos arcaicos em sua especificidade, ela trabalha com os possíveis sentidos simbólicos da mão, buscando uma ampliação de seus significados. Exacerbando a permanência da dúvida e do vazio, ela aceita ser incompleta. Nesse sentido, a arte faz parte desse processo dinâmico em que o homem moderno elabora sua relação com a falta. O campo da arte instaura-se socialmente como sagrado na medida em que é aceito como espaço do enigma na luta do homem contra a angústia da finitude. Esse tipo de ambigüidade no mundo laico atual evidencia aspectos profundos da psique do ser humano que deseja sempre, de alguma forma, a negação do vazio e da morte, e tenta realizar na arte esse gesto simbólico. Pois, como destaca Durand, "(...) a função da imaginação é, antes de mais nada, uma função de eufemização(...) toda arte, da máscara sagrada à ópera cômica, é antes de mais nada empresa eufêmica por se insurgir contra o apodrecimento da morte(...) a imaginação simbólica é dinamicamente negação vital, negação do nada da morte e do tempo" (DURAND,1988) Mas o vazio é também ele um mito, pois não pode ser dito por completo, atua sempre no espaço basculante do fechamento e da abertura. Nas sociedades tradicionais, as angústias da psique humana em relação a finitude da vida eram trabalhadas pela religião. No mundo ocidental moderno, as religiões enfrentaram fortes questionamentos, que conduziram a uma laicização generalizada da ordem social. A produção simbólica, que sempre esteve integrada na representação religiosa, viu-se frente a novos desafios. Diferentemente das religiões, a arte não tenta dar respostas que afastem os medos nem negá-los pelo recalcamento. Ela trabalha na suspensão do mistério através de sua vivência criativa. A capacidade de representação opõe-se à morte pela criação de um universo de formas visuais, que aponta, na permanência da arte enquanto instituição social, uma possibilidade da continuidade. Mas por que, entre tantas outra imagens, a mão permanece quase invariável, como uma presença marcadamente identificada?. O que dizem as mãos humanas? Qual o significado de suas representações? Como esses significados são retrabalhados na arte contemporânea? A imagem da mão humana é tão carregada de simbologias que se presta muito bem a todo tipo de elaboração poética. As mãos dizem, por exemplo, das ações e produções do homo faber, pois, de certa forma, foi o fazer manual que distinguiu o homem das demais espécies, na aurora de sua humanização. Semear e construir são ações da mão humana que representam a capacidade de transformar a natureza, de dominá-la, segundo uma vontade e uma razão próprias. O artista cubano Juan Elso fala desse fazer em seu trabalho, quando trança com ramos de árvores a forma de uma mão. A mesma mão que trança a palha é a que está representada, em uma duplicação do sentido fabril que reforça. Com critério semelhante, a brasileira Sonia Labouriau também enfatiza a gestualidade das mãos e sua capacidade criadora em "Pássaros Migratórios". Através de quatro gestos, ela fabrica, com uma pasta de Urucum, pequenas figuras de pássaros. A obra é constituída pelas fotos de sua performance "criativa", pelas pequenas figuras criadas e pela dissolução de uma delas em um recipiente com água. A capacidade humana de criação é abordada em uma construção artística ritualística em que o gesto e o pássaro se confundem. Tanto Elso como Sonia reiteiram de forma poética o homem faber através do mito da mão criadora. O fazer artístico retoma o fazer humano em seu sentido mais ontológico, segundo o qual foi fabricando artefatos que o homem se fez humano. FOTOS 1 E 2 As mãos são, ao mesmo tempo, símbolo de violência e de defesa. Com elas, o homem mata e destrói, com elas ele defende sua vida, seu patrimônio e seus entes queridos. Elas podem ser a arma mais primária e, muitas vezes, a mais poderosa. A mão acusa e salva, contendo em si a ambigüidade dos sentimentos e dos atos humanos. Elas expressam sentimentos através de carinhos e de afagos. Tocar e ser tocado é um dos componentes fundamentais da sexualidade humana. As mãos também "vêem". Elas possuem no tato uma espécie potente de sensor que permite uma série de percepções, estimulando sensações que não podem ser ativadas pelo olhar. Elas também gestualizam sentimentos e idéias, falando pelos mudos. Partindo dessas relações, o mexicano Gabriel Orozco constrói, com a pressão de suas mão sobre a argila, uma forma que lembra um coração humano, que ele faz fotografar sobre seu peito. Ao relacionar a forma obtida pelas marcas de seus dedos à forma de seu coração, ele está aludindo a esse mito do senso comum que une mão e coração a toda uma gama de simbologias afetivas, expresso desde as mãos entrelaçadas com corações, que ilustram cartões para o dia dos namorados, até as imagens da mão sobre do coração divino, em santinhos. FOTO 3 As mãos podem conectar um indivíduo ao outro, através de um gesto social de apresentação, mas também através de gestos mais profundos de apoio e auxílio. Elas representam a segurança que uma mãe ou um pai pode dar ao filho pela sua capacidade de sustentar uma criança, retendo-a frente a uma situação de perigo ou conduzindo-a por uma vereda difícil. As mãos entrelaçadas expressam sentimentos de solidariedade, seja de crianças brincando de roda, seja pelo aperto de uma mão amiga na hora da dor. A esse sentido recorre o boliviano Osvaldo Salermo, no trabalho em que apresenta, sob forma de estamparia, mangas de camisa uma ao lado da outra em fila, dobradas sobre si mesmas, sendo que da última emerge a impressão de sua própria mão. É como se a seqüência indiferenciada de indivíduos-objetos se alterasse pela colocação da imagem da mão do artista, garantindo sua presença solidária contra a indiferenciação. Ele está como que a oferecer sua mão a outros, abrindo, com sua individualidade, espaço em uma cadeia social de ausências. FOTO 4 A impressão digital é aceita universalmente como padrão de identificação o que lhe dá um preponderante papel enquanto signo de identidade. Como marca pessoal, a mão é símbolo de posse e de autoria, exemplificada pela assinatura que garante a responsabilidade daquele que assina. O mexicano Marcos Ramirez retoma essa significação com sua instalação "187 Pares de Manos", na qual usa fotos de mãos de indivíduos das mais diversas profissões e origens, tentando captar as diferentes presenças de imigrantes na cultura norte-americana. Ele usa as mãos em seu trabalho para enfrentar o "olvido de los antepasados", fazendo-as passar por representantes icônicas desses antepassados emigrantes, cujas identidades se perderam. As mãos estão no lugar dos rostos de cada um deles, são elas mesmas um tipo de retrato individualizado. São mitos de identidade recuperados que permitem reconhecer nas fotos de suas mãos a presença de cada um. Tal como nas antigas cavernas, as mãos aspergidas ou impressas sobre as paredes personificavam os sacerdotes; aqui as fotos das mãos petsonificam os indivíduos a quem elas correspondem. A parte significativamente responde pela identidade do todo. FOTO 5 A mão é responsável, também, pela escrita, esse registro da linguagem que atua na transmissão da cultura na história da humanidade. Com o seu movimento sobre superfícies, a mão deixa rastros que são instrumentos da memória. São significantes que o homem pode interpretar e, através deles se comunicar, repassando conhecimentos de gerações a gerações. Alguns artistas, como o argentino Victor Grippo e o já citado Osvaldo Salermo, retomam esse sentido da escrita como gesto primordial de busca de comunicação. Grippo, por exemplo, toma uma mesa, destas singelas e um pouco antigas, e sobre ela escreve um poema. Não é a mesa como suporte que interessa neste caso, mas a escrita como gesto individual que tenta passar, com a grafia do autor, o sentimento de tentar se comunicar sobre qualquer suporte. Osvaldo Salermo, de maneira semelhante, registra o gesto de sua grafia, repetindo no bordado com linha branca sobre tecido branco, a seguinte frase "Sali del encierro oliendo a intemperie ". Sua mão refaz inúmeras vezes o mesmo gesto, como a tentar convencer-se da impossibilidade de uma comunicação que ela tenta insistentemente instaurar. FOTOS 6 E 7 Mas se a mão diz do passado através da escrita, ela diz também do futuro, quando, na quiromancia, se acredita prever o porvir do indivíduo pelas linhas de sua palma, que alguns especialista decifram. Segundo essas crenças, as mãos possuem uma espécie de auto-inscrição do corpo, como se o tempo, cristalizado no destino pudesse inscrever-se nas linhas de sua palma. A norte-americana Whitfield Lovel retoma esse antigo mito de ler as mãos de forma figurada quando reproduz a palma de sua mão e sobre esta coloca uma imagem feminina, da qual se percebe uma ascendência negra. Riscos sobre o desenho parecem propor na leitura das mãos não o futuro, mas as suas origens. A artista indaga sobre suas origens usando sua mão como documento de sua identidade. A leitura das mãos, tão forte na cultura cigana, é retomada não para dizer do futuro, mas para contar de um passado muitas vezes esquecido, qual seja, as origens africanas nas colônias do novo mundo americano. De forma semelhante, a mexicana Tatiana Parcero reproduz igualmente a palma de sua mão e sobre esta traça o mapa de seu corpo. Imagens do exterior, de seu espaço geográfico, são remetidas para o interior de sua mão, e torna-se impossível distinguir o que é interno ou externo. Para Tatiana "Con estas imágenes intento ver através de la memoria del cuerpo aquello que traspasa los limites de la piel." Novamente, o mito da leitura do destino nas mãos reaparece, desta vez para nos dizer não do futuro nem do passado, mas de um mundo interior que se quer descobrir. FOTOS 8 E 9 Com tantas significações, não é difícil de entender por que esta imagem reaparece continuamente nas produções plásticas contemporâneas. Ela constitui um elemento visual que se incrustou no imaginário social, pois sobre ela se constituíram mitos ao longo das gerações. Encontra-se a memória da mão sob forma de marcas e impressões específicas deixadas sobre papel, tela, argila ou qualquer outro tipo de superfície, em imagens figurativas, realistas ou estilizadas mas, encerra-se também nos resíduos de sua ação, como, por exemplo, a escrita. Entretanto, em cada uma das propostas a figuração reatualiza algum mito, que é retomado de tradições culturais ancestrais, ainda que não haja uma referência direta ou consciente, pois, na verdade, a lembrança desses se perdem pelos corredores de um passado longínquo. É interessante observar como a ressignificação de mitos na arte é um processo que retorna de maneira sacralizante em uma sociedade predominantemente laica, onde a arte deixou de estar ao serviço da religião para obter autonomia, enquanto campo específico de conhecimento. A configuração da arte enquanto forma de onipotência do pensamento parece ser um dos aspectos fundamentais de sua definição como campo social do sagrado. A simbolização realizada na arte é abordada dentro de um processo que encarna sua significação, criando uma realidade particular, da qual ela é a própria manifestação. "A arte é o único domínio onde toda força das idéias se mantém em nossos dias. Na arte somente é possível ainda que o homem, atormentado por seus desejos, faça qualquer coisa que se assemelhe a uma satisfação; e graças à ilusão artística, este jogo produza os mesmos efeitos como se tratasse de qualquer coisa real." (FREUD, 1974) Segundo Freud, os desejos são a fonte originária desse processo que, de forma semelhante à magia, se materializa na capacidade do pensamento simbólico de torná-los realidade no plano do imaginário. Assim, a recorrência da representação da mão humana nas produções artísticas contemporâneas envolve a preseça de desejos semelhantes aos que estiveram implícitos nos inúmeros mitos tradicionais que utilizaram essa imagem, e cada um deles, à sua maneira, a carregou de significações que são repassadas a essas novas produções. É essa magia que a uruguaia Nelbia Romero retoma de forma intencional ao se aproximar das tradições arcaicas das culturas indígenas arrasadas no território uruguaio, utilizando o barro para nele imprimir, de forma violenta, seus dedos, perfurando a sua superfície. Nelbia elabora "(...)construções ficcionais tendentes a fazer notar um lugar vazio dentro da elaboração de uma identidade incompleta e não isenta de culpa."(HABER, 1994) Ao repetir o gesto de seus ancestrais, a artista tenta presentificá-los na cena uruguaia contemporânea, reparando simblicamente a histórica destruição desses grupos étnicos. Ela nega a ausência deles pela memória de suas mãos impressas no barro, tradicional fazer dos indígenas. FOTO 10 Osvaldo Salermo trabalha reiteiradamente com a temática das mãos, ainda que sob diferentes concepções. Em sua obra "Ropa Usada", enfoca o corpo humano completo, que se coloca como marca sobre lençóis que se estendem no ar. As mãos espalmadas evidenciam-se nestas imagens com muita força. O artista enfrenta-se com a poética do corpo em cruz, com o qual já se enfrentara Leonardo da Vinci, mas ele não o representa, ele o imprime diretamente do real, fazendo do corpo uma espécie de mancha, de sujeira sobre pano anteriormente imaculado. O tema das roupas usadas e da cópia cruzam-se nessa alegoria que investe, também, com a imagem de um homem de cabeça invertida, sobre o mapa da América Latina invertida de Torres Garcia. Aqui a questão do lugar assume o centro do debate, questionam-se as mudanças no corpo conforme seu lugar no mundo. As mãos espalmadas destacam-se nesta alegoria, pois fazem parte dessa cópia invertida, também elas invertidas na sua marca. Ele retoma o mito do Santo Sudário, e as mãos substituem o rosto enquanto signo de identidade. FOTO 11 A arte não se constituiria socialmente como pensamento irreligioso do sagrado sem essa relação de adesão profunda que ela é capaz de criar no espectador. Cada obra diz da individualidade do artista, mas diz também algo à individualidade daquele que a contempla ou a experimenta de alguma forma. A existência de um tipo de consenso social faz-se necessária para que se reconheça a condição cerimonial da arte, ultrapassando suas funções de distinção social. Uma maneira particular de atuação permite às artes visuais realizar em sua tarefa de epifania, lidando com imagens e com suas possibilidades de dar forma a algo obscuro, que não poderia manifestar-se fora dessa "cerimônia". Ou seja, entra aqui um fator decisivo na configuração da arte como um campo irreligioso do sagrado: sua aceitação social e a cumplicidade entre artista e espectador. Na possibilidade de partilhar socialmente seus desejos de negação do vazio e da morte é que artista e espectador constroem a magia da arte e a reconhecem socialmente. Pois, para explicar o fato de que o fazer artístico possa ser considerado como uma espécie de ato demiúrgico, não basta somente recorrer à configuração homóloga dos sistemas artítico e religioso. É necessário perceber como aspectos fundamentais da psique humana fazem parte desse processo em que o artista realiza sua tarefa de epifania. A imagem de arte deve executar um trajeto não linear, uma forma de desvio e de retorno, fugindo ao lugar comum daqueles caminhos mais fáceis e usuais. Diferentemente da imagem publicitária, ela não se propõe a dizer tudo claramente, evaporando o sentido e esvaziando a reflexão. Ao contrário, ela procura conduzir o espectador a "ver" e, ao mesmo tempo, tomar consciência de que algo lhe escapa, uma vez que é impossível captar-lhe todas as nuanças. Essa condição da imagem artística permite-lhe, então, retomar, muitas vezes, os mitos oriundos de distintos tempos e diferentes regiões que se encontram no acervo de uma memória cultural, e com eles instaurar os novos ritos da arte. Como os rituais precisam sempre de um tempo e de um espaço próprios, a arte conta com o espaço consagrado dos museus e galerias e com o tempo da exposição para sua consagração, para seu reconhecimento social e para sua sacralização. Assim, a arte estaria ocupando, na sociedade contemporânea, o lugar do divino, frente a secularização que se processou a partir do século XVIII e que Hegel já detectara quando observara o surgimento de uma "era estética" que iria substituir o que a arte perdera em sua relação com o religioso e com o sagrado. Mas encontra-se, no âmbito da arte contemporânea, um movimento constante de sacralização/ dessacralização/ressacralização. Esse movimento corresponde, de certa forma, aos mecanismos de tentar o preenchimento do vazio deixado pela laicização da cultura com uma concepção sacralizada da arte. A compreensão da impossibilidade desse "substituto divino" e a aceitação da condição de imanência do indivíduo têm como contrapartida uma reação contra essa sacralização. Entetanto, a melancolia é a decorrência dessa compreensão; então, novamente realizam-se tentativas de ressacralização, espécies de buscas de compensação daquelas respostas que foram perdidas com a laicização. É nesse movimento contínuo que se processam as diferentes vivências artísticas, seja em termos da sua produção ou seja da sua fruição. Como observa Mircea Eliade, "(...)o símbolo, o mito, a imagem pertencem à substância da vida espiritual, podemos camuflá-los, mutilá-los, degradá-los, mas jamais poderemos extirpá-los"(ELIADE, 1991). A arte lida de uma maneira poética com os símbolos, mitos e imagens, tendo como fonte de sua potência os desejos e os medos humanos. Ela trabalhando os mistérios da alma humana, sem tentar desvendá-los nem explicá-los, mas, antes mantendo-os em suspenso e, muitas vezes, exacerbando esse mistério pela consciência de que nem tudo pode ser dito e que as imagens carregam muito mais significados do que uma leitura discursiva pode evidenciar (2). Essa intenção de manter o enigma em suspenso pode ser percebida tanto nos discursos verbais como nos discursos plásticos contemporâneos. Assim, as diversas interpretações sugeridas pelas imagens da mão na arte contemporânea advêm dessa imagem em si e dos significados simbólicos que ela contém, mas instauram-se no sistema de relações que as ressignifica. É que a memória da mão, retomada nas artes visuais, realiza uma suspensão poética dos mistérios de seus mitos. Deixando garantido o espaço da imaginação em uma sociedade eminentemente racional, a arte tenta resguardar a capacidade de suspensão do mistério, evitando respostas definitivas ou esclarecimentos superficiais, garantindo o espaço saudável da dúvida.
(2) - As problemáticas relativas à capacidade das imagens plásticas não discursivas de conter significados foram abordadas de forma bastante esclarecedora por Susanne Langer em "Filosofia em Nova Chave", e por Didi-Huberman, em "Ce que nous voyons ce qui nous regarde". (voltar) __________________________________________________ Referências Bibliográficas 1. DIDI-HUBERMAN,Georges.L`Emprente. Paris, Centre Georges Pompidou,
Ce que nous voyons, ce qui nous regarde. Paris, Minuit, 1992 |