De
Luther Blissett à Wu Ming:
uma entrevista com Roberto Bui
por
Fábio Salvatti e Antonio Vargas
Roberto Bui é um dos fundadores do
Projeto Luther Blisset. E é preciso apresenta-lo como um
dos fundadores e não como um dos criadores justamente porque,
conceitos como autoria e criação solapam a simples
menção do nome Luther Blisset.
Criado na Itália, em meados da década de 90 por
um grupo de inquietos estudantes, o Projeto Luther Blissett caracterizou-se
por uma série de ações envolvendo a mídia
internacional. Herdeiro, tanto de uma tradição ancestral
relacionada a capacidade de contar contos como de outra, bastante
bem localizada nas práticas artísticas dos anos
60, as ações eram praticadas de forma coletiva e
anônima e quando identificadas, assumidas por Luther Blissett.
Particularmente interessante é o fato que neste Projeto
a tradição oral, responsável pela criação
e transmissão dos mais maravilhosos mitos da cultura, é
potencializada e re-instaurada na cultura ocidental de final de
Século XX graças especialmente ao uso da web imprimindo
às suas ações (aparentemente apenas traquinas)
uma dimensão artística graças as perguntas
que suas conseqüências levantam.
Mas o Projeto Luther Blissett é passado para Roberto Bui.
Agora ele é Wu-Ming (anônimo em chinês) . A
seguir apresentamos uma entrevista realizada em novembro de 2002
em Florianópolis -SC.
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Você
foi um membro do Projeto Luther Blissett e agora é membro
da Fundação Wu Ming. Quais são as diferenças
entre eles e porque houve uma "morte" do Projeto Luther
Blisset e um "nascimento" da Fundação
Wu Ming?
Wu Ming 1:
Luther Blissett era uma network ( nota
1 ) indiscriminadamente aberta. Qualquer um poderia usar o
nome e adicionar elementos para a reputação desse
herói imaginário que era Luther Blissett, uma espécie
de "bandido" da era da informação ou "Robin
Hood" da internet.
Qualquer ação que se fizesse com o nome de Luther
Blissett era automaticamente atribuída a ele como se fosse
uma pessoa real. Cada ação, cada escrito, cada performance
adicionava elementos e desenvolvia a reputação de
Luther Blissett. Era uma incrível comunidade aberta. Na
Itália, cerca de 400 pessoas usavam o nome, a maioria delas
eu nem conheço pessoalmente, só mantemos contato
via e-mail. Havia grupos em cada cidade. Em Bolonha havia um dos
maiores grupos, com cerca de cinqüenta pessoas. Basicamente,
quase todo mundo poderia adotar o nome. Não havia um comitê
central para filtrar a participação. Não
havia regras escritas sobre como usar o nome. Só havia
uma espécie de "autodefesa automática"
da network. Por exemplo, fascistas ou nazistas não
poderiam usar o nome para propósitos racistas, porque a
network tinha um estilo, ainda que não fosse um
estilo homogêneo. E, é claro, ser racista não
fazia parte do estilo.
Desde o começo, em 1994, nós decidimos que Luther
Blissett seria um plano qüinqüenal, de 1994 a 1999.
Não exatamente Luther Blissett, mas o Projeto Luther Blissett.
São duas coisas diferentes. O Projeto Luther Blissett era
a network original, a network das pessoas que começaram
a usar o nome no meio dos 90. Enquanto, por exemplo, as pessoas
que usam o nome Luther Blissett agora não são parte
do Projeto Luther Blisset, elas simplesmente são Luther
Blissett. O Projeto Luther Blissett era uma das possíveis
organizações de Luther Blissett. De qualquer maneira,
o Projeto Luther Blissett estava planejado para terminar em 1999.
Era uma paródia, uma caricatura da economia soviética,
com os planos de cinco anos. E também porque cinco anos
era tempo suficiente para se conseguir resultados, conquistas
concretas, e não era tempo demais.
Em 1999 publicamos Q, que foi nossa última contribuição
para Luther Blissett. O livro foi escrito por quatro membros do
grupo de Bolonha do Projeto Luther Blissett. Teve um incrível
sucesso. Vendeu 200 mil cópias na Itália e foi traduzido
por todo o mundo. Os leitores na Itália ficaram surpresos
porque Luther Blissett era famoso como uma coisa underground,
como uma coisa à margem, radical, vanguarda, coisas assim.
E Q teve um sucesso comercial mesmo no mainstream, mesmo
que o conteúdo do romance fosse bem radical. Esta foi a
última prova de que o Projeto Luther Blissett tinha que
acabar, porque os quatro autores de Q estavam ficando famosos
demais e todas as outras pessoas que estavam usando o nome de
Luther Blissett estavam ameaçadas de serem imediatamente
associadas com os autores de Q. Nós ficamos "pesados"
demais. Então nós pensamos que fizemos a coisa certa
quando pensamos em terminar o Projeto em 1999.
Então, em janeiro de 2000 nós começamos um
novo projeto (os quatro autores de Q e outro autor chamado Ricardo,
que escreveu romances de ficção científica
na Itália, muito radicais pelo estilo e conteúdo)
chamado Wu Ming. A diferença entre o Projeto Luther Blissett
e Wu Ming é que Wu Ming é um grupo, não é
indiscriminadamente aberto, porque escrever ficção
é uma tarefa difícil. Vai haver uma história,
com um começo, um fim e uma trama no meio. Então
vai ser preciso trabalhar duro para escrevê-la. Não
é fácil fazer isso. Somos um grupo de cinco pessoas,
mas há toda uma comunidade ao nosso redor, nós cooperamos
e colaboramos com um monte de gente. Nós temos um fanzine
eletrônico chamado Giap, com mais de 3000 assinantes,
que nos dão feedback e colaboram conosco. Wu Ming
é um grupo, não é uma network, como
o Projeto Luther Blissett. Essa é a principal diferença.
Mas há coisas em comum: a recusa à propriedade intelectual,
por exemplo, o fato de que não deixamos que nos fotografem
ou nos filmem, nós não aparecemos na mídia.
Nós aparecemos em público porque o nosso slogan
(vocês o acharão no nosso website, na primeira
página) é "transparente para os leitores, opaco
para as mídias", o que significa que aparecemos em
público, não somos elitistas, aristocráticos.
Nos últimos três anos, nós fizemos 150 palestras
em público, sem fotógrafos ou cinegrafistas. E a
outra coisa é o nome. Wu Ming em chinês significa
"anônimo". Então é uma referência
ao projeto anterior. Há coisas que sobrevivem do projeto
anterior, mas num outro contexto.
Quais foram os principais atos do Projeto
Luther Blissett e da Wu Ming?
Wu Ming 1: Os
principais atos de Luther Blissett foram o que chamamos de "trotes
de mídia" ( nota 2 ), guerrilha
de comunicação, coisas assim. Nós começávamos
"plantando" falsas notícias na mídia,
com jornalistas acreditando que eram verdadeiras, e as publicando,
e depois nós assumíamos a responsabilidade por elas.
Algumas das ações tiveram um impacto considerável
na Itália, e tivemos resultados concretos.
Por exemplo, nós usamos este tipo de estratégia
numa campanha de solidariedade contra a prisão de um grupo
de garotos que gostavam de Heavy Metal. Em Bolonha, houve uma
perseguição a esse grupo que foi acusado de organizar
rituais de magia negra, durante os quais algumas garotas e crianças
teriam sido estupradas. Era algo como um ritual satânico
com pedofilia. Mas era uma armação completa, não
era verdade. Uma associação católica era
quem os estava acusando e um juiz aceitou a pressão desse
grupo. Os integrantes do grupo foram condenados a um ano e meio
de prisão e foram criminalizados pela mídia. Era
evidente que eles eram completamente inocentes. Não havia
provas, não havia nem vítimas, só rumores,
boatos. Então nós começamos uma campanha
de solidariedade que não era tradicional, como abaixo-assinados
ou artigos na imprensa. Nós começamos a plantar
na imprensa notícias falsas, ainda mais sensacionais e
absurdas, contra o grupo, que se chamava Bambini di Satana.
Era uma associação cultural esotérica de
Heavy Metal, uma besteira assim, mas eles eram completamente inocentes.
Nós fizemos acusações maiores, incríveis
e absurdas. Por exemplo, nós inventamos um grupo de anti-satanistas.
Eu roubei um crânio no cemitério, coloquei numa mochila
e a deixei num armário da estação de trem
de Bolonha. Eu peguei o ticket do armário e enviei para
o principal jornal de Bolonha. Escrevi uma carta dizendo que se
eles estavam interessados no caso do Bambini di Satana
eles achariam coisas interessantes na mochila. O jornalista recebeu
muito tempo depois o ticket, então ele teve que pagar o
aluguel do armário por um mês, gastou um monte de
dinheiro para pegar a mochila, e quando ele abriu, havia um crânio
humano. No dia seguinte saiu uma foto do crânio na primeira
página do jornal dizendo: "Anti-satanistas anônimos
enviaram para o nosso jornal provas de atividades satânicas
em Bolonha". No outro dia, em outro jornal, nós revelamos
que era tudo falso, que nós tínhamos roubado o crânio.
Dissemos que aquilo era uma mentira e que nós a inventamos.
Mas nós inventamos uma. Quantas outras foram inventadas
pelos jornalistas? Então as pessoas começaram a
pensar a respeito. No fim o grupo foi inocentado no julgamento
e agora todos sabem que eles eram inocentes.
Então
nós tivemos resultados concretos nessa estratégia
de guerrilha de comunicação. Mas a maioria das ações
não era tão canalizada para um propósito
específico. A maioria das ações era para
espalhar a mitologia da existência de Luther Blissett.
Por exemplo, a primeira grande ação que fizemos
foi quando inventamos um cara, um artista britânico. Inventamos
sua vida, seus amigos, tiramos uma fotografia de uma casa em Londres
e dissemos que era seu endereço. E nós ainda moldamos
várias faces de fotos do meu tio com trinta anos e fizemos
um rosto artificial, que depois virou o rosto de Luther Blissett.
Nós enviamos para todas as agências de notícia
essa foto e um texto dizendo que éramos amigos desse cara,
desse artista, e ele estava em viagem pela Europa numa bicicleta
com a intenção de escrever no mapa da Europa a palavra
ART, conectando cidades. No final do T, ele estava perdido na
Bósnia. Nós escrevemos isso e colocamos nossos telefones,
perguntando se alguém tinha visto aquele homem, sua família
estava preocupada, e nós também. A última
vez que tínhamos ouvido falar dele, ele estava indo para
a Bósnia. Seis meses depois não sabíamos
o que tinha acontecido com ele. As agências de notícia
enviaram a foto para os jornais publicarem na sessão de
pessoas desaparecidas. A lenda se espalhou, porque esse cara teria
sido um dos fundadores do Projeto Luther Blissett, todo dia a
mídia era alimentada com um novo elemento da vida dele.
Na televisão estatal italiana tem um programa chamado Chi
l'ha visto? (Alguém o viu?), é um programa que
procura por pessoas desaparecidas. Tem uma grande audiência,
é no horário nobre. Nós recebemos um telefonema
deles, dizendo que eles estavam interessados em cobrir o caso,
e eles enviaram uma equipe de jornalistas para Bolonha, para nos
entrevistar. Nós contamos toda a história, e dissemos
que a última vez que ele esteve em contato com os italianos
foi em Udine, no nordeste da Itália. Daí nós
ligamos para alguns Luther Blissett de Udine e dissemos que a
equipe de TV estava indo para lá, então que eles
estivessem preparados para serem entrevistados e contarem um monte
de besteiras. E foi o que eles fizeram. E o pessoal de Udine disse
que o cara era de Londres, então se os jornalistas quisessem
saber mais sobre ele deviam ir para Londres e entrevistar seus
amigos. Daí, ligamos para algumas pessoas de Londres dizendo
o que estávamos fazendo, e que os jornalistas italianos
estavam indo para lá, e que eles deviam mostrar-lhes a
casa onde o cara teria nascido, colocá-los em contato com
seus amigos, então eles inventaram um monte de outras histórias
sobre esse cara, e a equipe de TV foi pra Londres, entrevistou
esses Luther Blissett e no final, quando estavam prestes a transmitir
o programa (já haviam mandado os comunicados sobre o episódio
para os jornais, em todo jornal havia um anúncio dizendo
"Hoje no Chi la visto o estranho caso do artista que
desapareceu na Bósnia"), suspeitaram e checaram no
Sistema de Pesquisa Anagráfico do Reino Unido e descobriram
que esse cara não existia, mas todos os jornais haviam
publicado a história. Então nós fizemos uma
conferência de imprensa e revelamos que tudo era uma invenção
e os jornalistas tinham gastado um monte de dinheiro de impostos
italianos, um monte de dinheiro público, para sair pela
Europa procurando por um homem que não existia. Eles nem
tinham checado se ele existia realmente, eles imediatamente saíram
por aí, procurando por ele. Esse foi o primeiro grande
ato do Luther Blissett na Itália porque todos os jornais
publicaram artigos a respeito. Daí houve uma reação
em cadeia de trotes usando Luther Blissett por cinco anos.
Como
o da Naomi Campbell...
Wu
Ming 1: É, mas esse é
verdade! É incrível porque é uma história
verdadeira. Naomi Campbell estava em Bolonha para uma cirurgia
plástica, para uma lipoaspiração. Quando
os jornalistas do Il Resto de Cailino, que é o maior
jornal de Bolonha ouviram os rumores eles imediatamente pensaram
"Não, isso deve ser um trote do Luther Blissett, não
pode ser verdade." E eles publicaram como se fosse uma notícia
falsa, mas era real. Eles estavam tão paranóicos
no final que qualquer notícia podia ser falsa que eles
confundiam as verdadeiras com as falsas. Isso era muito bom.
Eles
provaram seu próprio veneno.
Wu
Ming 1: Absolutamente. É um pouco
como homeopatia, acho que é saudável. Isso era Luther
Blissett. Wu Ming é diferente porque Wu Ming é coletivo
que trabalha contando histórias, mas de uma maneira diferente,
porque as histórias que contamos são projetadas
para serem publicadas em livros. Então nós continuamos
contando histórias, como fizemos no Projeto Luther Blissett,
mas agora estamos explorando um pouco mais os detalhes, um pouco
mais profundamente o campo da literatura de ficção.
Wu
Ming usa o termo copyleft para se referir a um novo jeito de
tratar a propriedade intelectual. Quais são seus princípios?
Wu Ming 1: A
palavra copyleft foi inventada pelo Movimento de Software
Livre, por Richard Stallman, nos anos 80. É o oposto
de copyright, um copyright de esquerda. Foi uma
grande inovação. Basicamente, o copyleft
é um meio de defender o trabalho das pessoas mas sem impedir
que outras pessoas o reproduzam ou copiem. Porque no Projeto Luther
Blissett nós escrevíamos "sem copyright".
Mas não é o suficiente. Porque "sem copyright"
significa que não há proteção possível
para que, por exemplo, uma produtora cinematográfica, uma
corporação, pegue a história e ganhe dinheiro
só parasitando o nosso trabalho. Aí nós começamos
a pensar no Movimento de Software Livre e entendemos que
o copyleft é mais válido. A nota de copyleft
é como a de copyright, mas abaixo dela está
escrito "o autor desta obra permite sua livre reprodução
somente para fins não-comerciais e somente se quem a utilizar
não a colocar sob copyright". Isto significa
que o copyleft, ao invés de ser um obstáculo
para a reprodução, se torna uma garantia da reprodução.
Porque é um direito inalienável. Significa "eu
tenho o direito autoral sobre o texto e você não
pode fazer nada para impedir que eu autorize outras pessoas a
copiá-lo". É um paradoxo, mas é um paradoxo
muito fértil. Porque você pega a legislação
existente sobre propriedade intelectual e a põe de cabeça
para baixo, ou melhor, do lado direito para o esquerdo. Eu acho
que esta é a melhor direção para a qual se
mover e explorar, porque defende o trabalho. Uma produtora de
cinema ou outra editora não pode pegar nossos livros e
ganhar dinheiro com eles sem dar-nos parte desse dinheiro. Q,
por exemplo, vendeu 200 mil cópias e várias produtoras
se interessaram em filmá-lo. Se não houvesse nenhum
tipo de proteção eles poderiam ter feito um filme,
reforçar sua posição nos negócios
de corporações e parasitar o nosso trabalho sem
pagar dinheiro algum. Nesse caso, eles têm que negociar.
Já as pessoas que não querem ganhar dinheiro sobre
a obra podem copiar e usar o livro. Para fins não-comerciais
a reprodução é gratuita.
Porque
vocês recusam o termo "artista" para o escritor?
Se pensarmos arte como Aristóteles, como uma techné,
que significa "um modo de produzir algo", não
podemos usar o termo "artista" para a produção
escrita?
Wu Ming 1: Nós
usamos o termo "arte", mas no mesmo sentido que a "arte"
dos artesãos. Se você for a um carpinteiro e pedir
para que ele faça uma mesa, ele a faz. Se você vier
até nós e pedir que nós contemos uma história,
nós o faremos. Temos técnicas para isso. Isso é
arte para nós. Nós nos chamamos de "artesãos
da narrativa", não "artistas", porque pensamos
que o termo "artista", infelizmente, está mais
relacionado a uma dimensão idealista, individualista de
arte: inspiração, gênio, as musas, e outras
coisas que fazem com que o artista de repente tenha uma iluminação,
enclausurado em sua torre de marfim, comece a escrever compulsivamente,
porque a musa está falando com ele, e o seu gênio
está em contato com estágios elevados de consciência,
toda aquela coisa romântica. Nós recusamos a superstição
sobre a autoria, sobre contar histórias, sobre escrever,
sobre arte. O termo "artesão" é mais concreto.
Significa que eu posso fazer uma mesa, posso esculpir coisas na
madeira, posso fazer um vaso de cerâmica, posso escrever
um romance. É muito simples, não é teórico.
Nós simplesmente pensamos que não somos gênios,
que não somos melhores do que ninguém, só
estamos tentando fazer nosso trabalho da melhor maneira possível.
Não estamos em contato com estágios elevados de
sensibilidade. Então não nos chamamos de artistas
porque pode haver uma falta de entendimento do termo.
Quando
vocês realizam suas ações, como as do Projeto
Luther Blissett, elas não são semelhantes ao conceito
romântico de artista?
Wu
Ming 1: Eu acho que não, porque
sempre colocamos a ênfase na dimensão coletiva da
realização da ação. É uma criação
coletiva anônima, a qual qualquer um pode adicionar um elemento,
um rumor, um pedaço da história. Isso não
tem muito a ver com o conceito romântico de artista. É
mais similar ao modo como a arte era antes das pessoas começarem
a teorizá-la. Contar histórias era um ato coletivo
nas épocas remotas. A Bíblia, o Mahabarata, a Ilíada
e a Odisséia são resultados de uma contínua
remanipulação coletiva de todo o patrimônio
histórico. Não se consegue saber quem exatamente
escreveu determinado livro da Bíblia. Acho que a nossa
atividade no Projeto Luther Blissett e Wu Ming é mais parecida
com o que a arte era antes de ganhar um "A" maiúsculo
de reverência. A "arte" antes de ser "Arte".
No
livro "Mind Invaders" vocês mencionam o plágio
como um caminho para a "condividualidade". Como você
concebe o plágio na cibercultura?
Wu Ming 1: Plágio
é uma definição ideológica que, para
propósitos provocativos, a cultura underground tomou
e começou a usar de maneira positiva. Plágio é
um conceito definido por lei, é um crime. Os afro-americanos
chamam uns aos outros de "nigger" ( nota
3 ), os ativistas homossexuais se chamam por "queer"
( nota 4 ) então nós nos chamamos
de "plagiários", porque é a maneira com
que o poder quer nos descrever.
Plágio é a maneira usual da evolução
da cultura. A cultura não nasce do nada, de repente uma
idéia brilhante, perfeita, vem à superfície
e começa a se disseminar. Não é assim. Há
sempre uma remanipulação, uma reconstrução
de coisas que existiram antes, ou que existiram paralelamente.
A cultura está completamente baseada no plágio.
O progresso de idéias implica plágio. Porque todo
mundo vive no mundo, envolto em realidade e se inspira em coisas
que já existem. Ninguém cria nada do vácuo.
É um pouco absurdo que a legislação existente
acha que o plágio é um crime, já que toda
mundo plagia. Por exemplo, enquanto estou escrevendo um livro
tenho conversas, vejo TV, encontro pessoas na rua, vou a concertos,
etc. Guardo tudo isso inconscientemente ou semi-conscientemente,
vou reelaborando e, de uma maneira ou outra, influencia o meu
livro. Isso é plágio. É normal. Plágio
é o progresso das idéias.
Tom
Zé, um músico brasileiro, escreveu que "a
era do autor e do compositor acabou", e vê surgir
a era do plagiocombinador. Você concorda? Como você
vê essa manifestação na produção
cultural atual?
Wu
Ming 1: Acho que ele está completamente
certo. Em música, algumas pessoas usam o termo plunderphonics,
( nota 5 ) que significa saquear, como
os bárbaros que vinham às cidades e roubavam tudo.
Na plunderphonic você toma dados e os reorganiza
e cria algo novo das coisas preexistentes.
Não é uma característica exclusivamente atual.
Sempre foi dessa maneira. Agora só é mais explícito
porque há tecnologias de recombinação de
informação, reprodução digital, compressão
de arquivos, compartilhamento de conhecimento.
No entanto, se você pensar no Teatro Elisabetano, na Inglaterra,
você pode comparar versões de várias peças
e ver a recombinação de muitos elementos, transferidos
de um lugar para outro. A razão é simples. Os dramaturgos
se encontravam em pubs e discutiam suas peças. Há
uma cena em "Shakespeare Apaixonado" em que Marlowe
e Shakespeare se encontram num pub e começam a falar sobre
o que estão escrevendo. Além disso, não havia
distinção entre o autor e o ator. Shakespeare atuava
nas peças que escrevia. Então ele continuava discutindo
coisas com os outros atores durante os ensaios, o texto era constantemente
modificado, com inspirações de outras peças
que os atores tinham visto, ou peças que tinham lido. A
"Comédia dos Erros", de Shakespeare, por exemplo,
tem exatamente o mesmo enredo que "Menecmi", de Plauto,
mas com variações brilhantes que criam algo diferente.
"Menecmi", por sua vez, é similar a "Fratelli",
de Terêncio, é mais ou menos o mesmo enredo. Essas
duas peças passam pelo enredo da "Comédia dos
Erros". Provavelmente eles continuavam mudando referências
durante as apresentações. O público normalmente
gritava coisas como "esse personagem é chato, corte-o"
ou "por que você não faz esse idiota morrer,
eu o odeio". Ele tomava as sugestões e continuava
mudando o roteiro para as apresentações seguintes.
O que temos agora, quando lemos Shakespeare, é apenas uma
das muitas versões que foram achadas. É uma espécie
de combinação que filologistas fizeram, mas é
impossível se ter uma versão única das obras
do Teatro Elisabetano.
Depois houve o romantismo, o academicismo, o idealismo na filosofia,
houve também os interesses da indústria cultural
no século XX para criar essa figura legendária do
"autor", como se fosse um indivíduo. Mas, antes
disso, a criação era explicitamente baseada na plagiocombinação,
porque não havia lei criminalizando isso. Toda a legislação
de direitos autorais é muito recente. Duzentos anos, no
máximo. Há muitos exemplos de tentativas de se criar
uma legislação antes disso, mas a forma moderna
de direito sobre propriedade intelectual não tem mais de
duzentos anos. Antes disso a plagiocombinação era
como a autoria de hoje, acontecia freqüentemente. Continuou
acontecendo, mesmo depois, mas implicitamente, porque a lei impede
o plágio. Agora, por causa das novas tecnologias, está
se tornando explícito novamente. Mas não é
novo.
Qual
a sua opinião sobre fenômenos baseados na web,
como o Linux e o Napster, por exemplo?
Wu
Ming 1: Primeiro, o Napster, não
só o Napster, mas qualquer programa para compartilhar MP3
numa plataforma peer-to-peer ( nota 6
), porque o Napster não existe mais (por exemplo, eu uso
WinMX, e outras pessoas usam Kazaa). É outro exemplo de
como o poder pode definir um conceito ideologicamente: pirataria.
Isso não é pirataria, é uma reapropriação
da cultura por pessoas que acham um absurdo que um CD custe 20
libras na Inglaterra. É incrível como é caro
comprar música em todos os países. É claro
que é proporcional a renda média da população.
A indústria fonográfica é incapaz de compreender
o que está por trás da pirataria. É uma necessidade,
porque a música é inacreditavelmente cara e as pessoas
querem ouvir música sem pagar esse preço. As gravadoras
podiam ter feito algo para parar com a pirataria há três
anos. Eles tinham que baixar os preços dos CDs e se contentar
com lucros normais, ao invés de lucros incríveis.
Mas eles queriam sugar o sangue dos consumidores, e não
entenderam o que estava prestes a ocorrer. Eles achavam que para
parar o Napster bastava mandar a polícia. O Napster foi
barrado, mas a idéia de compartilhar conhecimento numa
network de peer-to-peer se espalhou para todos os lugares.
Se houvessem cortado os preços talvez não existisse
a necessidade de se fazer download de músicas em
MP3. Agora, é uma cobra comendo o próprio rabo.
Já que as pessoas não estão comprando mais
CDs, eles aumentam os preços. Acho que brevemente eles
vão entrar em colapso. Eles estão se suicidando
porque são estúpidos.
A coisa mais importante sobre o Linux, ou os Free Softwares
e Open Source (nota 7 ) é
o copyleft. É uma inovação radical
na maneira de se tratar a propriedade intelectual. Mas há
outra coisa muito importante. Free Softwares e Open Sources
são a prova de que produtos feitos por um monte de pessoas
em cooperação são melhores do que produtos
com copyrights. Na tecnologia de servidores de internet,
Linux é muito melhor e mais confiável do que o Windows.
As pessoas que programam o Windows são pagas para fazê-lo,
não estão entusiasmadamente dedicadas ao trabalho.
São simplesmente empregados. Enquanto isso, há uma
grande comunidade de milhares de usuários que continuam
melhorando o Linux, porque o copyleft as autoriza a fazê-lo.
Então, se eles acharem um falha no software, eles podem
arrumar a falha e enviar a solução. Essa é
a prova de que trabalho comunitário, coletivo, colaborativo,
faz um produto melhor do que a maneira usual, centralizada e corporativa
de produção.
A
revista brasileira Carta Capital escreveu, em 24 de abril de
2002, que Luther Blissett era o herdeiro da Internacional Situacionista
de Guy Debord. O grupo fez uma nota no site dizendo que isso
não era correto. Vocês tem um texto chamado "Guy
Debord está morto". Qual a conexão entre
Wu Ming/Luther Blissett e Guy Debord?
Wu
Ming 1: Nós viemos de outro movimento,
Centri Sociali Occupati, na Itália, viemos do Movimento
Autonomia, da cultura underground. Não temos
muito a ver com a visão aristocrática e elitista
da Internacional Situacionista de Guy Debord. Por exemplo, todas
as coisas de que falamos até agora seriam trabalhadas por
Guy Debord como manifestações do Espetáculo,
como reificação ( nota 8 )
de coisas inúteis. Porque o Situacionismo nunca olhou para
o lado positivo da produção da cultura. Eles sempre
tiveram uma visão apocalíptica. É essa coisa
da reificação! Tudo o que você fizer será
reificado pelo capital. Uma teoria que fica te dizendo que tudo
o que você faz é inútil é uma teoria
reacionária. Nós achamos que uma teoria radical,
uma teoria revolucionária, devia mostrar-lhe que as coisas
são possíveis de se fazer. Mas o Situacionismo não
é assim. O Situacionismo é herdeiro da dialética
negativista da Escola de Frankfurt. A maioria dos situacionistas
eram pessoas muito ricas, não estavam em contato com o
dia-a-dia dos trabalhadores, de pessoas que dependiam dos resultados
concretos da batalha. Então eles tinham essa idéia
dândi e estética da batalha, ela deveria ser pura,
não deveria ter um resultado concreto, porque todo resultado
seria reificado pelo capital, incorporado no espetáculo,
e usado contra você. Na Europa, o Situacionismo teve 30
anos de existência e nenhuma aplicação prática.
Porque as pessoas que leram a teoria situacionista e gostaram,
simplesmente passaram a escrever teoria situacionista. Então
era só escrita, escrita, escrita... e nenhum envolvimento
em conflitos reais, porque os conflitos reais seriam reificados...
Eu estou pouco me fodendo para isso. Conflitos reais devem alcançar
resultados que pessoas possam usar para viver melhor. Estou pouco
me fodendo para a visão purista, aristocrática e
apocalíptica.
Por isso, acho que Luther Blissett e Wu Ming não são
pós-Situacionistas. Porque é um outro jeito de se
olhar a realidade. Nós colocamos a ênfase no lado
positivo da produção cultural, e não no lado
negativo. Há uma frase de Adorno que é incrivelmente
reacionária, e está em um de seus trabalhos mais
famosos, "Mínima Moralia", é uma coletânea
de aforismos. Ele diz: "Nessa sociedade repressora, a emancipação
do indivíduo é uma ameaça para o próprio
indivíduo." É uma camisa de força, você
não pode escapar. Então é completamente inútil.
E o Situacionismo começou muito bem no final dos 50 e começo
dos 60, falando de "construção de situações",
"reapropriação do dia-a-dia", mas depois
de 1962, começou a falar de "reificação"
e "espetáculo" e se tornou o oposto da intenção
inicial. Hoje em dia eu acho que é uma teoria que não
tem utilidade prática.
Qual
é a participação de Wu Ming no movimento
de anti-globalização?
Wu
Ming 1: Wu Ming esteve diretamente envolvida
desde o começo do movimento na Itália. A Itália
é um laboratório de subversão muito interessante.
Desde que o Projeto Luther Blissett saiu do Centri Sociali
Occupati nós estamos envolvidos nas atividades do movimento.
Nossa principal contribuição para o movimento é
a contação de histórias. É a tentativa
de contar as histórias certas, que façam as pessoas
quererem lutar e continuar lutando. Não é simplesmente
propaganda. Nós chamamos de mitopoiesis. Nós
falamos sobre mitos, mas não no sentido de "histórias
falsas", mas no sentido de "histórias compartilhadas".
Histórias que pertencem a uma comunidade maior e que são
constantemente remanipuladas pela própria comunidade.
É
o mesmo sentido do termo que usam autores como Mircea Eliade
e Campbell.
Wu
Ming 1: Exatamente. Vem da antropologia.
Os antropólogos dizem que Mitopoiesis foi uma fase
muito antiga da história da humanidade. Nós acreditamos
que a mitopoiesis continua acontecendo todo dia. Mitos
do dia-a-dia. As histórias são reconstruídas,
remanipuladas e colocadas em prática. Especialmente na
nossa colaboração com os Tute Bianchi ( nota
9 ), que não existem mais, nós contávamos
histórias, basicamente. Como aquele personagem do Asterix
que acaba amarrado a uma árvore no final da história.
O bardo. Nós éramos os bardos do movimento nos últimos
três anos. A única diferença é que
nunca fomos amarrados a uma árvore, as pessoas não
corriam de nós quando começávamos a cantar
e a contar a história, e participávamos dos banquetes
no final da história. O bardo é um bom exemplo,
porque em alguns vilarejos o bardo era o contador de histórias,
era quem contava a epopéia da vila. Nós fizemos
mais ou menos a mesma coisa com o movimento.
Um exemplo de mitopoiesis. Antes da manifestação
em Gênova ( nota 10 ), nós
escrevemos uma longa história sobre as mais radicais rebeliões
da história da Europa, desde o século XIV. Era mais
ou menos como a literatura de cordel. Era um poema épico,
em verso livre, que começava no século XIV e acabava
com o levante zapatista de 1994. Era a história de rebeliões
camponesas e a narração dizia "nós somos
novos, mas somos os mesmos de antes", que é uma frase
do subcomandante Marcos. Era a continuidade da luta desde o século
XIV até Gênova. As pessoas ficaram abismadas: "Uau,
eu não sabia! Há uma continuidade!". Atores
começaram a declamar a história nas ruas, foi lido
em várias rádios livres por todo o país,
foi publicada em vários fanzines, revistas e sites, foi
traduzido para o espanhol, para o francês, para o inglês
e começou a circular. E construiu um épico sobre
"as razões pelas quais vamos para Gênova".
Era uma cobrança pelo que aconteceu no século XIV,
no século XV, no século XVI, etc. Funcionou porque
várias pessoas tomaram conhecimento do texto e foram pra
Gênova. Elas se sentiram parte de uma comunidade maior,
que não era apenas contemporânea, mas que incorporava
os ancestrais. Era uma ironia, porque é claro que não
há continuidade real, mas era um ato mitopoiético.
A mídia oficial tentou descrever o movimento como coisa
de comunistas, que as pessoas eram como aquelas dos anos setenta,
forjando origens distorcidas do movimento. Então nós
dissemos "nós somos as mesmas pessoas que no século
XIV fizeram aquela rebelião...". A mídia foi
pega de surpresa.
Há
uma bela frase no seu site que é "Essa revolução
não tem rosto". Se a revolução não
tem rosto, como será o rosto do mundo depois da revolução?
Wu
Ming 1: Não há "depois
da revolução", o processo é contínuo,
já começou. Você pode ver em certas partes
da vida que já há pré-condições
do que podemos chamar de anarquia, socialismo ou comunismo,
você que sabe. Eu não acho que a revolução
é algo que acontece de repente, do dia pra noite, e que
no dia seguinte o mundo está diferente. Acho que isso
é muito ingênuo. Eu acho que os Free Softwares,
o movimento anti-globalização, tudo o que está
acontecendo, nos mostra que a única possibilidade de
evolução está na maneira mais solidária,
coletiva, de se fazer as coisas, de se viver. Acho que a internet
é um sintoma disso. A internet tem resistido a todas
as alternativas de se comercializar. Há dez anos as pessoas
falavam da internet apenas como uma maneira de se fazer negócios.
Eles diziam que em alguns anos as grandes corporações
iriam tomar o lugar das manifestações individuais
na rede. Não aconteceu assim. Na verdade, a chamada "nova
bolha da economia" explodiu, as corporações
não puderam fazer lucro com a internet, e a internet
ainda está lá, o acesso continua crescendo, os
espaços individuais e horizontais ainda são a
realidade da internet. A internet é um sucesso por causa
dos fóruns, das listas de correspondência, dos
chats, das networks de peer-to-peer, por
causa disso. Não por causa dos sites das corporações,
como a sony.com. Ninguém dá bola para a sony.com.
As pessoas acessam a internet para se comunicar umas com as
outras, não com as Corporações. Essa é
uma boa prova do fato de que estamos evoluindo, ainda que lentamente
e com contradições, para uma maneira mais coletiva,
solidária, horizontal, de viver junto. É claro
que é uma guerra. Nós temos inimigos. Temos Bush
e outras pessoas que querem parar esse processo, mas o processo
já começou. Não é algo que vai ocorrer
no futuro. Está ocorrendo agora. Temos que entender isso
e lutar.
<<<
Notas
1.
A palavra inglesa network parece exprimir melhor o significado,
neste caso, do que a palavra rede. <<<
2
Em inglês, media pranks. <<<
3
Gíria usada para referir-se a negros nos EUA. <<<
4
Gíria usada para referir-se a homossexuais de ambos os
sexos. <<<
5
De "plunder" (pillhagem). A minha livre-tradução
seria "piratofonia". <<<
6
Tipo de compartilhamento de dados em que qualquer usuário
é capaz de acessar arquivos que qualquer outro usuário
conectado na rede disponha para tal fim. <<<
7
Open Sources e Free Softwares são programas de programação
coletiva e participativa. Qualquer usuário pode incrementá-lo
e enviar uma nova versão para a rede. <<<
8
A palavra que ele usa é recuperation. Preferi "reificação"
a "recuperação". <<<
9
Grupo de ativistas políticos que foi importante nas recentes
manifestações anti-globalização, em
especial em Gênova, em julho de 2001. Usavam macacões
brancos, de onde o nome, e eram adeptos da não-agressão
como instrumento de luta. <<<
10
Durante a reunião do G-8, em 2001. <<<
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