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"Narigudos" e Insatisfeitos,
Graças a Deus!
Célia Maria Antonacci Ramos
O inglês Terry Jones inspirado nas tradições dos contos
de fadas nos narra, em "Os Narigudos", o problema de uma pequena
comunidade ao sul do oceano Pacífico.
Havia uma ilha no meio do oceano, onde as pessoas tinham os narizes
demasiado grandes. O chefe da ilha meteu-se então num barco e navegou
até ao sítio onde vivia o mais sábio de todos os
homens.
Então, qual é o problema? - perguntou o mais sábio
de todos os homens. - Bem - disse o chefe da ilha -, o meu povo é
infeliz porque tem o nariz demasiado grande. Não conseguimos enfiar
as camisolas pela cabeça porque o nosso nariz é muito grande.
Não conseguimos saborear uma bebida sem batermos com o nariz no
outro lado da chávena. Não podemos nos beijar porque os
nossos narizes estão sempre a meter-se no caminho. Mas o pior de
tudo é que nem mesmo gostamos uns dos outros por causa dos nossos
horríveis narizes grandes. Consegues ajudar-nos fazendo-nos os
narizes pequenos? (Jones,1990:65).
Mas não só no conto maravilhoso encontramos fragmentos
da insatisfação com a aparência física. Pesquisas
antropológicas e indicadores semióticos - múmias,
desenhos e objetos escultóricos - atestam que o corpo natural é
malquisto, no ontem e no hoje, em todas as culturas. O gosto pelas transformações
físicas começa na nascença ontogenética para
se transformar em código filogenético.
A nudez integral oferecida pela nascença é logo manipulada.
Frances Borel, em seu livro "La Vêtement Incarné (Les
métamorphoses du corps)" diz: " Desde que nasce, o ser
humano é marcado pelo social, como se sua nudez natural fosse absolutamente
inadmissível, insuportável, vista como perigosa. Logo que
a criança aparece, a sociedade apodera-se dela, manipula-a, veste-a,
forma-a e deforma-a, utilizando algumas vezes até uma certa violência.
(1992:p,15) O corpo alterado passa a ser um microtexto embaraçado
no macrotexto da cultura. A história do corpo segue o caminho da
história da cultura. "Memória mutante das leis e dos
códigos de cada cultura, registro das soluções e
dos limites científicos e tecnológicos de cada época,
o corpo não cessa de ser (re)fabricado ao longo do tempo",
escreve a historiadora Denise Bernuzzi de Sant'Anna. (1995:12).
Assim, guiados pelas crenças mágicas e pelas possibilidades
materiais - vale dizer, técnicas - tão logo nascemos - e
hoje até mesmo antes, através dos processos de microcirurgias
que já alteram no útero as "anomalias genéticas"
-, imprimimos no corpo as leis, convenções e fetichizações
de nosso tempo e espaço. As marcas de nossa etnia impressas no
corpo o singularizam como texto de nossa cultura.
O corpo de ontem e o corpo de hoje
Frances Borel, já citada neste trabalho, documenta algumas transformações
praticadas pelas culturas qualificadas como primitivas. Na Polinésia,
uma jovem não tatuada não pode se casar e, no Congo, as
jovens que choram por não suportarem as dores das escarificações
são consideradas inúteis, também não encontram
marido.
De igual valor é o trato dado aos pés das chinesas. Por
motivos eróticos, tão logo nascem, as chinesas têm
os pés atados a fim de obter uma deformação profunda
e irreversível de seus pés. Da deformação
de seus pés dependerá seu sucesso amoroso e matrimonial.
As inventividades não cessam aí. O berço de uma tribo
de índios da América era construído para deformar
a cabeça dos recém-nascidos. E o que dizer então
dos colares das mulheres-girafa da Birmânia? Ou, ainda, as já
muito conhecidas deformações labiais de diversos povos?
Mas, não só esta pesquisadora documentou as intervenções
operada pelas culturas no corpo humano. A etnóloga francesa Marie-José
Tubian, em suas pesquisas no Tchad, na África, registrou inúmeros
rituais de alteração corporal praticados nas jovens mulheres
daquela comunidade. Tubian escreveu:
Encontrei uma mulher camponesa por acaso no alto de uma colina onde ela
estava colhendo. Ela pertence ao grupo Zaghawa Artaj, que vive nos limites
norte da cultura do milho. Mais ao norte, as chuvas são insuficientes
para se esperar colher alguma coisa. Em suas bochechas há três
incisões e na sua testa talvez uma cicatriz acidental, ou uma marca
de cupim. Seu lábio inferior foi lancetado com espinhos para provocar
uma inflamação e depois colorido com carvão azul.
Sua narina foi perfurada com um pequeno botão de madeira para manter
aberto um orifício no qual, nos dias de festa, ela coloca uma pérola
de coral ou um anel de ouro. Seus dentes são de um branco brilhante
e sua fronte raspada. (1994:p.58).
No Tchad, explica Tubiam, as mulheres fazem escarificações
labiais por motivos eróticos, mas também escarificam a parte
lateral da cabeça por motivos medicinais, aliviar as dores de cabeça.
Na mitologia da Polinésia são os deuses que ensinam os homens
a tatuar. Esta arte é confiada aos mestres muito veneráveis,
que a praticam segundo rituais sagrados. Já os Havaianos tatuam
a língua em sinal de luto e, nas ilhas Marquises, os homens são
tatuados no rosto e as mulheres no peito.
Os exemplos, assim como os propósitos, são inumeráveis.
Todavia, a transformação ou idealização da
imagem do corpo não é uma exclusividade das culturas qualificadas
como primitivas. Já a Grécia imperial registrou, no discurso
de suas esculturas, os limites de um corpo idealizado. Anos mais tarde,
1500 de nossa era, durante a Renascença dos modelos gregos, o gravador
Dürer expressou esta opinião: " O nu ideal deveria ser
construído a partir da cabeça de uma mulher, os seios de
outra, as pernas de uma terceira, os ombros de uma quarta, as mãos
de uma quinta, e assim por diante. O resultado glorificaria o Homem."
(Berger:1972, 66). Esta composição de beleza ideal de Dürer
foi levada às últimas conseqüências na modernidade.
Os modernos processos de representação - fotografia, cinema
e televisão -, com suas montagens e (des)montagens da imagem do
corpo -, inauguraram as possibilidades técnicas virtuais dessa
idealização. Logo a seguir foi a vez das pesquisas científicas
facilitarem e confirmarem este sonho. A cirurgia plástica estética
radical, os implantes computadorizados dos "chips" no cérebro
e as alterações genéticas tornam-se rotina nos dias
de hoje. Assim, hoje, tanto quanto ontem, e talvez até mais, cultuamos
o próprio corpo e construímos nele a expressão de
nossa cultura. Escrevendo sobre os novos recursos técnicos de intervenção
no corpo, Jean-Jacques Courtine (1995:89) cita a lição de
Sam Fussel a respeito da invenção dos body-building.
" Você pode se tornar a pessoa que sonha ser", dizem os
body-builders.
"Você pode desafiar ao mesmo tempo o inato e o adquirido e
fazer de você um outro."
As esteiras dos body-buildings guiaram toda a administração
corporal das sociedades contemporâneas. A disciplina do corpo exige
cada vez mais regimes, danças aeróbicas, joggings e cirurgias
plásticas estéticas. Surge a "obsessão pelos
invólucros corporais", diz Courtine. (idem:86).
Michael Jackon é um exemplo desta transformação radical
do Ser. Mas, ele não está só. A extraordinária
autotransformação da "colunável" Ivana
Trump é mais um exemplo da realidade embaralhada na fantasia, que
vai pouco a pouco construindo uma personalidade ficcional, e logo tornando-a
fato.
Entretanto, não nos contentamos apenas com as novas possibilidades
de interferir no nosso corpo. Buscamos em culturas exóticas, que
antes considerávamos primitivas, a beleza do mito tatuado no corpo
e todos os excessos de argolas e piercings, a primeira moda dos homens.
Em pesquisa recente na loja de tatuagem "Stoppa Tatoo da Pedra"
, em Florianópolis, constatei o retorno dessas antigas interferências
corporais. Autônoma, sem qualquer comprometimento com uma crença
específica e completamente diversificada, essa interferência
cirúrgica estética no corpo humano reaparece em nosso cotidiano.
Recupera imagens anteriormente tatuadas na Polinésia ou no Japão.
A imagem do dragão é um exemplo. Este mito do oriente foi
recuperado em nosso cotidiano após a canção de Caetano
Veloso "Menino do Rio". Nesta canção, o poeta
exalta o surfista carioca tatuado no braço com o dragão
japonês. Mas não só mitos de culturas passadas são
motivo para tatuagens. A contemporaneidade inventa ou traduz, também,
imagens do nosso cotidiano invadido pela mídia, televisão,
quadrinos, cinema e música, mitos de nosso "aqui e agora".
Batman ou os quadrinhos de Hanna Barbera são também requisitados
como motivos-tatuagens.
Mas não só em Florianópolis esta prática reaparece.
Registramos o retorno dessa fantasia em todo o ocidente. Em uma publicação
recente - 25 de outubro, 1998 -, o jornal Le Mond, Paris, em uma
matéria especial sobre a prática da tatuagem na França,
informava que na cidade de Paris, nos anos 80, apenas quatro lojas de
tatuagem dividiam a clientela parisiense. Hoje, abre-se quase uma loja
por dia, completa a nota. Mas não só na França. As
revistas especializadas, que concomitantemente com a abertura das boutiques
passaram a freqüentar as bancas de jornaleiros em todo o ocidente,
estão repletas de novos endereços espalhados por todo o
ocidente. Endereços, imagens, procedimentos e depoimentos relativos
à marcagem do corpo - tatuagens, piercings, branding ou escarificações
- são divulgados semanalmente e internacionalizam-se diariamente.
A jovem Jen é um exemplo de um rosto com múltiplos "piercings"
e tatuagens. A estética do 'self-laceration' enfatiza o auto-embelezamento.
"A escrita: Vitória sobre a morte" (Baitello)
O corpo é uma mídia. Tatuar ou alterar a forma do corpo
é escrever no corpo. Todas essas alterações no corpo
se apoiam na crença dos poderes mágicos da escrita.
Diz Baitello:
A escrita consegue aquilo que o homem em sua existência física
jamais logrou: sagrar-se vencedor perante a morte. E aquilo que na natureza
não é possível, é passível de criação
artificial pelo mecanismo semiótico da cultura.
Assim, com este lastro simbólico de perenidade, a escrita - desde
suas mais rudimentares até suas mais modernas versões -,
tradução perene dos ícones visuais e sonoros efêmeros,
vai servir de fundamento para o desenvolvimento coerente da cultura humana,
vai se tornar ela própria seu código genético, substituindo
a oralidade dos mitos e assumindo, por conseguinte, seu caráter
sagrado. (1997:67).
Dos pés à cabeça, no verso e no reverso, cada parte
do corpo - e o corpo todo-, ontem e hoje é matéria prima
para a escrita da cultura. As mutilações - labiais, circuncisões,
tatuagens, redução do pé, e mais modernamente os
"body buildings", que vestem o corpo com a massa muscular -
documentam que as insatisfações com a aparência do
corpo fazem parte da escrita do homem. São elas mesmas que transformam
o homem biológico em homem cultural. No catálogo da exposição
Post Human, 1998, sob a foto de dois seios nus lemos: "O fato de
alguém aceitar uma aparência natural e uma personalidade
natural está sendo substituída pelo crescente senso de que
o normal é reinventar-se. (...) Nosso meio tecnológico e
social está gradualmente formando um novo conceito de aparência.,
uma nova concepção do que significa ser humano." Entretanto,
como constatamos acima, a interferência no corpo humano não
é uma inventividade de nossa época tecnologicamente mais
bem equipada. Desde sempre o homem se fez homem por significar seu corpo,
escrevendo nele o imaginário de sua cultura. Assim, o modelo de
ser humano há muito deixou de ser biológico. O que torna
inútil retroceder a um suposto grau zero das civilizações
para encontrar um corpo impermeável às marcas da cultura.(Sant'Anna:1995:12).
Os aparelhos que "corrigem" a postura, modelam e alteram a
anatomia, ou as mutilações corporais - hoje camufladas nas
ciências médicas, sob o nome de cirurgias plásticas
estéticas "indolores" - são provenientes de tempos
imemoriais e marcam a entrada do homem no universo do simbólico,
vale dizer, do conto maravilhoso.
Assim, percebemos que mais do que (re)inventar a moda, estivemos sempre
a (re)inventar o próprio corpo.
Já o grande escritor brasileiro Guimarães Rosa, em sua obra
prima Grande Sertão:Veredas, assim declamou,
O senhor... Mire veja: o mais importante e bonito, do mundo, é
isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não
foram terminadas - mas que elas vão sempre mudando. Afinam ou desafinam.
Verdade maior. É o que a vida me ensinou. Isso que me alegra montão.
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Bibliografia
BAITELLO Jr.,Norval(1997). O Animal que Parou os Relógios.
São Paulo. Annablume.
BERGER, John (1972) Modos de Ver. Tradução de Ana
Maria Alves. Lisboa,
Portugal, Edições 70.
COURTINE,Jean-Jacques (1995)Os Stakhanovistas do
Narcisismo in Políticas do Corpo. São Paulo.
Estação
Liberdade.
GRÖNING,Karl (1997) La Peinture du Corps, Arthaud, Paris.
JONES,Terry (1990) Novos Contos de Fadas. Tradução
de
Fernando Rebelo. Lisboa Editora Presença.
ROSA , J.G. (1963) Grande Sertão: Veredas. Rio de Janeiro,
José Olímpio.
SANT'ANNA,Denise Bernuzzi de(1995).Políticas do Corpo. São
Paulo. Estação Liberdade.
TUBIANA, Marie-José (1994) Femmes du Sahel (regards donnés).
Sépia. Paris.
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