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Identidade, uma memória a ser enfrentada.
Maria Amélia Bulhões
"La memoria que nadie puede censurar. La memoria que vamos elegiendo
para nuestra legitimación en el mundo. La memoria que sirve para
que otros recuperem la suja. La memoria de un hombre que, unida a otra
y otra y a otra llega a formar la memoria de todos los hombres."
Nelson Herrera Ysla
O indivíduo realiza, a cada momento, reelaborações
daquelas recordações que melhor lhe permitem estruturar
seu presente, de maneira que, o passado se refaz constantemente num devir.
Também socialmente, em cada época e em cada local, os homens
recorrem a diferentes usos das lembranças coletivas como forma
de compreender, ou justificar, o presente. A memória funciona assim
como um referente das identidades, pois é nela que estão
guardadas as mais caras lembranças é nela que se nutrem
as redes sociais de sentido. É ela que faz reviver um passado que,
presente em cada um, conduz escolhas e possibilidades de construção
de um futuro. Manter viva a memória coletiva é uma maneira
de impedir o vazio, de evitar a destruição das identidades.
Não um passado embalsamado, servindo de referência a uma
história que conserva privilégios de minorias mas sim lembranças
vivas, capazes de concorrerem na descoberta dos sentidos sociais. Identidades
que existem em cada um, enquanto história vivida, enquanto cadeia
de gerações, embora na maioria das vezes socialmente se
busque construí-la de maneira artificial, enquanto ideologias e
mascaramentos.
Mas, na contemporaneidade, problemáticas mais complexas se introduzem
no campo das identidades. A globalização, através
das redes de informatização estabeleceu uma intercomunicação
de signos que rompeu com as territorialidades impondo a temporalidade
do presente permanente. Como se comportam as redes de sentido tradicionais
e os vínculos de coesão social nesta nova dinâmica
internacional?
Esta complexidade é mais difícil de ser abordada em países
sujeitos a uma condição histórica de periferia e
dominação. Um francês pouco se pergunta sobre sua
identidade, ela está inscrita no cotidiano da vida social e cultural
de seu país, com todas as suas conseqüências. No Brasil,
no entanto, esse questionamento ressurge continuamente em nossa tradição
cultural. Como bem analisou Octavio Souza, a identidade nacional brasileira
é ingênua nos períodos do neo classicismo e do romantismo,
se torna cientificista no final do século XIX, ganha teor revolucionário
na década de 50 e permanece hoje como tema da crítica sociológica,
antropológica ou literária.(1)
Este não parece ser um debate superado, pelo contrário reaparece
continuamente, sob o manto de distintas colorações políticas
e econômicas. Neste momento, em que os processos de internacionalização
da cultura colocam na ordem do dia a renovação dos laços
de identidade cultural regionais, o tema retorna. Os indivíduos,
em geral, buscam encontrar nos seus referenciais locais âncoras
para sobreviver a homogeneização que lhes é imposta
pela sociedade de consumo, em seu afã de ampliar mercados. Quando
se questiona o papel transformador dos meta-discursos, evidenciam-se as
impossibilidades de modelos nacionalistas, já experimentados sem
sucesso. Assim um amplo debate se estabelece, buscando novos vínculos
de coesão, que permitam pensar as identidades nesta dinâmica
nacional/internacional da crise das utopias. As corriqueiras oposições
interno/externo, passado/futuro, nacional/internacional, organizadas em
lógica binárias não parecem mais se adequar nesta
ordem descentralizada.
Os atores sociais que buscam abordar a problemática da identidade
em lógicas mais ramificadas parecem ter mais sucesso. Eles trabalham
com modelos provisórios, com recortes mais complexos que correspondem
as novas organizações do poder e as relações
assimétricas da ordem social. Sem respostas definitivas, no âmbito
deste tema algumas explorações reflexivas se desenvolvem.
Como abordar, de forma mais crítica, identidades mais ramificadas?
Para responder a esta questão é preciso, de antemão,
reconhecer as dificuldades com o enfrentamento do passado, no Brasil(2).
Um passado de dependência e dominação, no qual, ao
mesmo tempo, as elites locais exerciam uma coerção implacável
sobre os povos indígenas e africanos, e submetiam-se a uma subalternidade
humilhante em relação aos seus pares europeus. Uma cadeia
perversa de sujeição, que condicionou, no universo ideológico
das elites, o reconhecimento do conchavo e do apadrinhamento como práticas
louváveis e desejáveis, além de uma passiva aceitação
da condição de periferia. Um passado construído sobre
a exploração do trabalho escravo, que procura esconder a
negritude da maioria da população, sob mascarados preconceitos
raciais, que ocultam verdadeiras discriminações sociais.
Escravidão que ensinou a convivência com níveis de
exploração do trabalho e de violência em relação
ao ser humano que justificam uma presença, quotidiana, da miséria
e da degradação. Escravidão, que construiu no imaginário
social um desvalor do trabalho manual, com conseqüências funestas
na estrutura produtiva e nas práticas artísticas.(3)
Este passado fala de fatos que, a maioria, gostaria que não houvessem
ocorrido, mas ao denegá-lo, sob forma de amnésia coletiva,
estão favorecendo seu retorno recalcado em leituras acríticas
e fantasiosas.
A memória é única e múltipla ao mesmo tempo,
ela pertence a cada indivíduo mas ela pertence a sociedade e não
há possibilidade de disassociá-las. Por isso, encarar de
frente um passado comum, pode restituir, a cada cidadão, individual
e socialmente, a capacidade de reconhecer sua identidade, aquela que traz
marcada em seu ser, a ferro e fogo pela história de seus ancestrais.
Assumir esta história talvez restitua-lhes a capacidade de interferir
na construção de um futuro mais pluralista. Porém,
é mais cômodo manter esta amnésia coletiva que afasta
os indivíduos de sua identidade, para continuar ingenuamente, procurando
por ela em um passado dourado e glorioso. Este tem sido o processo social
mais tradicional levado a cabo por amplos setores da cultura nacional.
Entretanto, atores mais críticos desta mesma intelectualidade têm
assumido, ao longo de sua história, de forma dolorosa e profunda,
esta tarefa de desenterramento.
Nos momentos de tensão, em que se constituem novos desafios para
a constituição do sujeito, nutre-se uma produção
artística bastante rica na qual muitos equívocos históricos
podem tomar outro endereçamento, a partir dos processos de simbolização
que as artes realizam.
Interessa aqui, especialmente, detectar como, no campo das artes plásticas,
este trabalho crítico tem sido realizado nos últimos anos,
analisando suas possibilidades, limites e perspectivas. Para desenvolver
esta análise, é importante identificar os marcos de um panorama
internacional no qual as propostas locais integram-se, uma vez que esta
produção artística não pode ser pensada fora
de uma internacionalização no bojo da qual ela se formou.
Muito mais ainda neste momento em que o processo de globalização
dissemina a lógica de uma cultura unitária e homogeneizadora.
Neste panorama, vale destacar um processo de estetização
generalizado, que atua em diversos níveis da sociedade. Exemplos
contundentes deste processo, dominante na realidade em diferentes instâncias,
desde o cotidiano até a política, podem ser identificados,
mais claramente, na publicidade. Ela é capaz de transformar qualquer
tipo de produto em um protótipo de beleza, e signo de uma forma
de vida ideal. Para a publicidade, que cobre de belas imagens o cotidiano
de milhares de indivíduos, não existem pessoas feias ou
defeituosas, não existe pobreza ou sujeira. O mundo se tornou,
sob sua ótica, asceticamente perfeito. A própria guerra
passou a ser 'estética', em suas formas televisivas. Nenhuma imagem
mais, choca os indivíduos envolvidos pela proteção
visual da sociedade do simulacro.
Mas, como afirma Wolfang Welsch, 'Onde tudo é belo, nada mais é
belo; estimulação ininterrupta conduz ao embotamento; estetização
vira anestetização.... No meio da hiperestetização,
há necessidade de áreas esteticamente baldias'(4)
Neste universo de imagens, belas e vazias, setores mais críticos
das artes plásticas desempenham a árdua tarefa de criar
'áreas esteticamente baldias'. Tentam estabelecer rupturas nesta
falsa perfeição, remetendo cada espectador de volta para
um mundo bem menos ideal, mas, talvez, muito mais humano. Evidenciando
os aspectos mais torpes e baixos da realidade, alguns artistas querem
trazer de volta uma humanidade perdida num afã de falsas pretensões.
Eles o fazem, rompendo radicalmente com os padrões tradicionais
de um belo idealizado, expondo o feio, o tosco e o abjeto. Estes artistas
abdicam dos caminhos fáceis, para jogar o público, mesmo
contra sua vontade, nas profundidades do inferno. Assim como Dante, em
sua Divina Comédia, eles querem descer novamente às profundezas
da alma humana. Tarefa difícil, em um mundo de superficialidades
promovidas pela sociedade do espetáculo e da propaganda.
Além disso, o mundo contemporâneo está re pleto de
imagens, que invadem todos os espaços, tragando cada indivíduo,
e de certa forma anestesiando seu olhar. Ao fazer do olhar o grande veículo
da comunicação, a publicidade lança um desafio às
artes visuais. Como conseguir apreender a atenção de um
espectador acostumado ao ritmo vertiginoso do zapping publicitário?
Gilbert Drurand afirma que 'há muitas formas de iconoclasmo. Uma,
por falta, puritana, é a de Bizancio
A outra, mais insidiosa,
é de algum modo, por excesso......o iconoclasmo da segunda espécie,
por excesso, por evaporação do sentido, foi o traço
constitutivo e continuamente agravado da cultura ocidental.'(5)
Como superar então este vazio de significação,
característico da imagem da propaganda?
Torna-se necessário interferir neste adormecimento do olhar, revitalizando
este órgão de sentido humano, tão solicitado e ao
mesmo tempo tão massacrado na contemporaneidade. Os setores mais
críticos das artes plásticas exercem o trabalho da falha
e do lapso, reivindicando para a arte a presença do olhar. Tentam
introduzir na simbolização um outro sentido, um outro endereçamento,
recuperando seu papel na constituição do sujeito, a nível
individual e social. Buscam encontrar na imagem seu caráter latente,
trabalhando com o que ela mostra em si mesma e com o que ela esconde de
seu sentido. Pois as imagens, assim como as palavras, contam com seus
significados não evidentes, que se mostram somente em um segundo
ou terceiro olhar. Os artistas não usam o entulhamento e a repetição
exaustiva como forma de atordoamento, mas tentando dar às imagens
seu tempo próprio, esperando que o espectador as deixa falar.
Nesta questão imbrica-se um terceiro desafio, com o qual se enfrentam
alguns setores das artes plásticas, neste momento. Como assumir
uma condição particular e complexa de pensar o mundo através
das imagens?
A modernidade colocou toda uma série de indagações,
relativas aos meios expressivos e à construção das
linguagens visuais, no centro dos questionamentos artísticos. Obteve-se,
assim, a partir de inúmeras investigações, uma série
de conquistas no domínio ferramental da linguagem. O artista plástico
pode portanto, hoje, fazer da imagem uma forma de presentificação,
um 'estar no mundo' que o interpela. Na medida em que pode encontrar na
imagem os mesmos registros - real simbólico e imaginário
- que encontra na linguagem verbal, alguns artistas trabalham explorando
este campo de alternativas. A arte contemporânea mais crítica
nega-se a ser um elemento decorativo ou publicitário, ela se propõe
a assumir, com todos os riscos, essa empresa de pensar o mundo, manipulando
as especificidades e as possibilidades deste pensamento visual descoberto
pelas vanguardas do início do século.
Mas, como, dentro deste novo campo de possibilidades, construir redes
de sentido? Como estabelecer vínculos de coesão em países
divididos por diferenças sociais marcantes e por um passado de
dominação? Talvez se possa pensar em identidades que se
resolvem mais dialéticamente, com lógicas mais ramificadas,
onde haja espaço para a diferença. Concepções
de identidade mais subjetivas, que expressem lutas de poder internas mas
que evitem com rigor o risco de uma fragmentação total.
Tarefa difícil e que somente pode ser tentada com propostas provisórias,
complexas e transitórias. No quadro destes desafios, alguns artistas
plásticos brasileiros têm assumido, em seus trabalhos, um
exercício das lembranças coletivas que podem ser uma contribuição
ao pensar dessas identidades híbridas que aqui se construíram,
sem fazer disto novos exotismo.
Neste texto, interessa em especial, sondar as formas como estes artistas
plásticos têm participado desta empreitada, seus limites
e suas possibilidades. Selecionou-se, para esta análise, três
artistas, de diferentes regiões do país, que de distintas
maneiras, abordaram aspectos da história brasileira, de maneira
bastante crítica: João Câmara, do Recife; Cildo Meireles,
do Rio de Janeiro e Rosangela Renó, de Minas Gerais. Eles se debruçaram
sobre as recordações coletivas, de tempos mais longínquos
ou de tempos mais próximos, perscrutando a construção
de realidades atuais nestes diferentes momentos.
A questão da violência social é evidente e, muito
intensa, em todos os trabalhos analisados, o que impõe indagar
sobre sua presença nesta sociedade e em seu imaginário.
A violência, com a qual convivem quotidianamente todos os brasileiros,
é trabalhada por estes artistas como forma de construção
de novas condições de relacionamento com a realidade. Eles
buscam tornar visível os traumas que, socialmente, muitos se esforçam
por esquecer. Cada um deles mostra de alguma maneira como a arte, enquanto
'representação'- dispositivo imaginário - pode processar,
em identidades frágeis e ambíguas, esta violência
real de lembranças que se tornaram perversas e destruidoras pelo
recalque de uma amnésia coletiva.
João Câmara, por exemplo, desenvolveu uma série de
trabalhos sobre os momentos finais do governo de Getulio Vargas que entitulou
'Cenas da vida brasileira -1930-1954. Nestas telas, ele fragmenta o espaço
pictórico num processo obsessivo de desconstrução\reconstrução,
fazendo emergir os sentimentos contraditórios que estiveram envolvidos
neste processo histórico. Sentimentos que, presentes ainda hoje
no imaginário da sociedade brasileira, justificam as dificuldades
encontradas pelos historiadores em sua abordagem. Estas imagens falam
de emoções contraditórias, de uma forma muito mais
intensa e complexa do que o conseguem as análises de documentos
de época.
Pode-se afirmar que, de alguma maneira, a perversa cadeia de dominação,
que faz das elites locais, ao mesmo tempo, senhores e servos, se materializa
nestes corpos contorcidos e fragmentados. São formas que dizem
de uma unidade impossível, porém desejada. A quase monocromia
das telas não esconde a violência destes acontecimentos que
envolveram assassinatos e suicídios, mobilizando multidões
revoltadas pelas ruas, em todo o país. Pelo contrário, ela
emerge pulsante, sob os terrosos e os vermelhos.
Quem conhece os rostos dos personagens pode encontrá-los, um a
um, desfilando despedaçados pelo espaço pictórico.
Mas, quem não os conhece nada perde da força expressiva
dos acontecimentos pois, apesar de figurativos, os trabalhos dizem, enquanto
poesia dramática, superando qualquer relato descritivo dos fatos.
Por isso, eles são ricos no sentido de possibilitarem a emergência
de um passado recalcado, de uma violência degradante, desumana,
que transforma indivíduos em marionetes desarticulados. Pode-se
dizer que são quadros épicos, um épico às
avessas, que questiona o heróico, que não conduz os personagens
a palcos e glórias, mas os atira destroçados nos abismos
de sua humanidade contraditória.
Explorando à exaustão as ambigüidades do governo Vargas,
João Câmara realizou um trabalho que o classifica como um
pintor histórico, no sentido de uma tradição que
remonta ao século XIX. Mas ele renova esta tradição
introduzido uma crítica contemporânea radical, que se constrói
através da fragmentação das imagens. Sua importância
advém de um total compromisso com a construção de
um discurso, onde significante e significado interagem. Um discurso qu
e não oculta, mas pelo contrário, põe a mostra as
a irregularidades dessas lembranças coletivas.
Cildo Meireles utiliza recursos plásticos totalmente diversos;
ele trabalha com instalações, uma categoria artística
difícil de definir. Um de seus primeiros e mais polêmicos
trabalhos foi 'Tiradentes: Totem homenagem ao preso político'.
Ele instalou em uma praça pública, em Belo Horizonte, um
poste de madeira onde amarrou galinhas vivas e ao qual ateou fogo. A morte
dos animais, seus ruídos desesperados e o fogo ardendo eram imagens
de uma violência total, dizendo ao público estarrecido da
violência de sua sociedade. A dor pela morte dos animais colocava-os
frente a uma dor maior, pelas mortes terríveis a que foram submetidos
muitos homens em diferentes momento da história brasileira. Se
muitas pessoas reagiam enco lerizados contra a morte dos animais, com
duras críticas ao seu trabalho, porque então se submetiam
calados às agressões que estavam sendo cometidas, quotidianamente,
contra inúmeros setores da população?
De certa forma, Cildo colocava o espectador frente a frente com a denegação
permanente da violência que a sociedade brasileira realiza, no ocultamento
de seu passado.
Mais recentemente, ele realizou outro trabalho em que volta seu olhar
para a história de seu país. Numa instalação,
elaborada dentro de um projeto denominado "Missões', o artista
construiu um enorme superfície quadrangular, qual um gigantesco
recipiente repleto de moedas brilhantes. Pendentes do teto, sobre esta
superfície, presos por fios invisíveis, caiam ossos. Uma
coluna de hóstias interligava os ossos às moedas. Do conjunto
emanava, ao mesmo tempo, uma idéia de morte e uma atração
irresistível ao olhar, pelo brilho das moedas. A relação
entre os materiais utilizados, moedas, ossos e hóstias, deixava
bem claro que riqueza e morte foram as duas faces de uma mesma realidade,
e de que a religião católica participou de maneira marcante
deste banquete. A exploração do trabalho humano, para o
qual a maioria fecha seus olhos, é a fonte de todas as riquezas
que se produziram neste país, desde o tempo da colônia. Exploração
que ainda permanece, e que se presentificava na dimensão traumática
da obra de Cildo Meireles.
Rosangela Renó tem um trabalho também diferente dos anteriores,
ela organiza ambientes com fotos. Não se pode dizer que ela seja
uma fotógrafa no sentido usual do termo, pois não realiza
necessariamente as foto que utiliza. Ela as procura por suas imagens como
uma espécie particular de ready- made, objetos pré-fabricados,
depositários de lembranças anônimas. Segundo Paulo
Herkenhoff 'Aqui está uma irônica referência à
contrução e a busca de aura na fotografia. Para a artista,
a amnésia social embutida na ideologia ou deliberadamente provocada
alimenta-se da própria fotografia, na perversão de sua função
de memória isual para então produzir recalcamento(6).
Ao tentar lutar contra a amnésia que a sociedade impõe,
Rosangela Renó revida com seu próprio veneno: a impessoalidade
levada ao extremo.
Em seu trabalho 'Imemorial', por exemplo, ela consultou os arquivos da
Novacap (empresa construtora de Brasília), em busca de fotos de
operários mortos durante a construção da cidade.
Encontrando nestes arquivos, inesperadas imagens de crianças operárias,
ela as incorporou em seu trabalho. As fotografias em película ortocromática
dos mortos, ampliadas e colocadas no piso em bandejas de metal, davam
idéia de tumbas, contrastando de forma chocante com as foto em
cores escuras, das crianças, nas paredes. As imagens 'presentificam'
uma cadeia de exploração do trabalho, que faz parte da história
nacional e cuja violência na maioria das vezes se quer esquecer.
A exploração do trabalho infantil e o morticínio
fizeram parte da história desta capital moderna desde a sua origem.
Com seu trabalho, Rosangela quer impedir que isto seja esquecido.
A exclusão social do indivíduo e, a sua negação
enquanto sujeito, é tratada por ela nos retratos, sequenciados
e indiferenciadamente repetidos, que transmitem uma sensação
de ausente presença em 'Cicatrizes'. Esta forma de negação
do sujeito é o tema que ela retoma quando recolheu fotos do arquivo
médico de um presídio, de 1920-40. Foram mais de 15000 fotos
processadas. Estas fotos mostravam marcas, cicatrizes, tatuagens, formas
de fuga ao anonimato da condição destes indivíduos,
cujo encarceramento e indiferenciação de tratamento negavam
a individualidade humana. Nestas ambíguas 'marcas pessoais' ela
identificava a história de uma violência contínua
e reinteirada. As fotos expostas contam a trajetória das relações
da sociedade brasileira com os presos, fazendo deles 'não indivíduos'.
Mas elas mostram, também as reações destes, tentando
através de cicatrizes e tatuagens marcar sua individualidade tão
frágil.
Cada um a sua maneira, estes artistas, com suas 'obras', tentam revelar
verdades desagradáveis de um passado, que a maioria gostaria de
esquecer para sempre. Frente a uma amnésia coletiva, tecida socialmente
ao longo de gerações, eles expõem as marcas do esquecimento.
Eles fazem a exumação da história, e, alí
inde o esquecimento seria o agenciamento da morte a arte reintegra uma
'presença'e aponta para a construção de um Sujeito
soci al mais plural e complexo. Eles presentificam as ausências,
trabalhando com a falha e o lapso. Suas obras assumem a dimensão
traumática de atos que trabalham sobre o recalque que mapeiam sombras.
Atos que instauram diferenças, possibilitando ver a exclusão
que foi constantemente negada na história heróica, autorizada
e apologética das elites locais.
Possibilitar, pelo discurso, o retorno de vivências dolorosas, por
muito tempo ocultadas, não é também a tarefa da psicanálise
na estruturação das identidades?
Neste sentido, arte e psicanálise não teriam um objetivo
comum na construção de identidades mais críticas
e pluralistas?
Frente a uma sociedade homogeneizadora, tentativas de recuperar aspectos
de um passado recalcado pelo esquecimento não seriam, portanto,
maneiras de assumir identidades mais ramificadas e complexas?
Na busca de formas críticas de enfrentar um passado comum, com
suas lembranças indizíveis, arte e psicanálise talvez
estejam atuando juntas pois, em tempos de globalização identidades
culturais não podem ser construções nacionalistas
idealizadas. Assim, os trabalhos destes artistas realizam a crítica
a cultura, mostrando, sob diferentes prismas, como a memória de
um passado, que quiseram assassinar, pode sobreviver sob os traços
deslocados e condensados da arte para reencontrar a vida.
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Referências Bibliográficas
1. SOUZA, Octávio. Fantasia de Brasil,
São Paulo, Escuta, 1994. (voltar)
2. Basta ver que os temas mais difíceis da
história nacional, como escravidão e independência,
recebem tratamentos superficiais e acríticos na maioria dos compêndios
escolares. (voltar)
3. Um exemplo desta repercussão, nas artes
plásticas, é o demérito com que muitas vezes é
visto o trabalho manual que estas práticas envolvem. Isto tem como
conseqüência uma forte oposição entre fazer e
pensar, com a supervalorização do segundo. (voltar)
4. WELSCH, Wolfgang. 'Estetização
e estetização profunda ou a respeito da atualidade da estética
nos dias de hoje' In Porto Arte , número 9 ,Porto Alegre, Instituto
de Artes/UFRGS, 1990. (voltar)
5. DURAND, Gilbert. A Imaginação
simbólica. Lisboa, Martins Fontes, 1986. (voltar)
6. HERKENHOFF, Paulo. Rosângela Renó.
S.Paulo, EDUSP, 1997. (voltar)
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