A
Mansão de Quelícera foi concebida por uma equipe
de artistas que trabalharam a partir de vários recursos tecnológicos:
desde os tradicionais lápis, pincel, papel e aquarela, até
os softwares de tratamento de imagem. Nesse último estágio,
a apropriação de imagens da história da
arte foi a principal estratégia adotada visando a sedução
visual e a educação estética do jogador.
O
termo apropriação designa o ato ou efeito de tomar para
si, apoderar-se integralmente ou de partes de uma obra, para construir
uma outra obra. Sobre a apropriação de imagens da história
da arte, Wollheim sustenta que "falar sobre o que uma apropriação
significa para um artista é falar sobre os sentimentos, emoções,
pensamentos despertados nele na medida em que o pintor tem certeza de
que a imagem ou o motivo apropriados transmitirão esses mesmos
efeitos em outras pessoas suficientemente sensíveis e informadas".
É fazer com que uma obra, anterior, seja citada dentro de uma
nova obra. Se seguirmos esse raciocínio, a apropriação
já existe na arte há séculos, embora o uso do termo
seja recente, e foi praticada por artistas tão diversos quanto
Poussin, Manet ou Picasso. No entanto, o uso do termo está relacionado
ao momento histórico posterior às rupturas modernistas,
quando a arte não buscou mais o novo e não se ocupou
mais em negar o passado, mas vislumbrou a possibilidade de transitar
pelo passado e presente de forma mais solta. A apropriação
passou a se apresentar, então, como um conceito importante para
a reflexão sobre as práticas artísticas do século
XX que atualizam fragmentos de nossa memória artística-cultural.
Tal prática revisa as significações já atribuídas
às obras da história da arte e conferem uma maior complexidade
aos discursos da arte contemporânea.
A idéia de manter uma relação mais solta com a
história é um dos temas dos textos de Walter Benjamin,
ao criticar a abordagem linear e unívoca da história -
que percebe o passado como algo fechado, que não depende do olhar
de quem o vê. Benjamin pensou a história como algo que
está em constante construção, daí a postura
mais solta em relação a ela, sobre a qual podemos dar
um "salto tigrino" para trazer para o presente discursos e
fatos que ficaram interditos. O que chamamos aqui de apropriação
está relacionado com as idéias de Benjamin, principalmente
quando esse propõe olhar para o passado, não como ele
(supostamente) foi, mas em tudo que ele pode ser desde o presente. Ele
cita o exemplo da moda para isto: tem sua atenção voltada
para o presente mas se move a partir de referências do passado.
Tadeu Chiarelli pensou a prática do "uso de imagens de segunda
geração", a qual chama citacionsimo, recorrente
nas artes plásticas na segunda metade do século XX, como
algo que está implicado com os avanços tecnológicos
do último século: na fotografia, no cinema, nas impressões...
Uma tecnologia que inicialmente foi usada para registrar o presente,
construir uma memória material e preservar o passado, passou
a ser usada como matéria prima para composição
de novas obras. Atualmente,
com o processo de digitalização de imagens, somado a amplitude
de veiculação das mesmas pela Internet, a história
da arte tornou-se um grande e acessível "banco de dados"
sobre o qual o artista transita, sem prender-se à linearidade
da história, sem ter a pretensão de abarcar na totalidade
um momento, um estilo ou um artista.
O
jogo A Mansão de Quelícera é o resultado
do uso desta prática artística, com uma finalidade estético-educativa.
Não considera-se aqui, estas duas finalidades como contraditórias.
Afinal de contas, principalmente a partir da Idade
Moderna, a ação artística vem se mostrando
comprometida com a formação do olhar e da sensibilidade
estética da sociedade. Equilibrando os ideais artísticos
e educativos, optou-se no jogo de Quelícera pela estratégia
de apropriação - diferenciando-se de outras práticas
pedagógicas que também fazem referência à
imagens da história da arte, como a cópia, a apresentação
de reproduções e a releitura. Construiu-se assim um espaço
interativo, lúdico, visualmente rico e, principalmente, potencializador
do olhar poético.
O conceito (além da prática) de apropriação
está presentes no jogo: aqui não se aborda um estilo,
um momento histórico, um gênero, um artista específico
da pintura européia. As obras apropriadas foram escolhidas pela
aproximação estética que mantém com aspectos
pontuais da trama do jogo. A referência maior adotada não
foi a "linha do tempo" histórica, mas a narrativa ficcional,
ou seja, as histórias dos personagens e os segredos da Mansão.
Foram criadas situações nas quais o jogador irá
interagir com as obras, podendo depois, com a ajuda do educador, buscar
informações para aprofundar este primeiro contato, a partir
de uma teia de relações (formais, temáticas, poéticas
e históricas) apresentada aqui no Site de Apoio ao Educador.
As
apropriações feitas podem ser pensadas a partir de três
métodos:
>>>> Extração de objetos/personagens
de imagens da história da arte, re-contextualizados nos ambientes
da Mansão. Alguns exemplos:
- Os instrumentos
musicais foram retirados de obras dos artistas Vermeer e Baldung,
e são importantes no ambiente do Salão
de Baile, atuando como chave para acionar o grande baile da
Mansão;
- As frutas, a jarra, a cafeteira e a caneca, que se encontram no Claustro,
foram retiradas de obras de Cézanne. Nesse cômodo, o jogador
apenas observa partes das imagens, mas se quiser passar da Sala de Jantar
para a Cozinha, terá que remontar a obra Natureza
morta com maçãs;
- A lamparina, que está em uma das salinhas da Masmorra, foi
retirada de Os
comedores de Batata, e a cadeira, que está no Hall,
foi o tema principal da obra A
Cadeira de Paul Gauguin, ambas de van Gogh;
- O boi pendurado na Despensa
é parte da pintura Boi
Esfolado, de Rembrandt.
>>>> Apropriação total
(ou quase total) da obra seguida de um intenso tratamento digital, preservando
algumas de suas características e elementos e alterando outros,
a fim de adequar a imagem à trama do jogo. Por exemplo:
- A Despensa
foi criada a partir da obra São
Jerônimo em seu estúdio, de Antonello da Messina.
Após a manipulação digital, seu personagem foi
retirado (colocado na Biblioteca)
e seus objetos de estudo foram trocados por potes e alimentos. A própria
concepção de espaço e de luz criada pelo artista
foi alterada. Acabou-se extraindo suas características renascentistas
e intensificando a influência artística que a Europa
Setentrional
teve sobre Messina em seu tempo. O resultado é que este ambiente
ficou com características visuais que o aproximam da arte barroca
(tema abordado no texto sobre o ambiente Despensa). Para o professor,
este ambiente se tornou um ótimo exemplo de como, em arte, o
modo de fazer (como o artista concebe a cor, a luz, a composição,
etc) é tão ou mais importante para a visualização
do conteúdo de uma obra do que o tema.
- Os ambientes de Quarto do "Enigma das três idades"
também foram construídos sobre obras: o Quarto da Jovem
teve como base a obra A
anunciação, de van der Weyden, e o Quarto
da Velha, O
sonho de Santa Úrsula, de Carpaccio.
- O Quartinho
do Anão, ao qual o jogador tem acesso a partir do Porão,
foi criado a partir de A
anunciação, de Tintoretto.
- A paisagem que vemos ao abrir a porta da cozinha para a rua foi apropriada
da obra Toledo
sob tormenta, de El Greco.
>>>> Apropriações do
esquema visual de uma obra para o desenho de um cenário. Um exemplo
é A
história de Nastagio degli Onesti, de Botticelli,
que foi referência para o ambiente da Sala de jantar.
A
idéia de apropriação parte do princípio
de que a cultura (especificamente, as imagens produzidas ao longo dos
séculos nas artes plásticas, na literatura e, mais recentemente,
no cinema) nos pertence e constroem constantemente nosso imaginário.
Ao invés de negar o passado para afirmar uma suposta originalidade,
o artista contemporâneo não receia em criar a partir de
fragmentos de nossa memória artístico-cultural.
Atualização
em 30/01/2006.